Eu, Robocop: neoliberalismo, greve dos atores em Hollywood e I.A.

Você está mexendo no celular e se depara com reels ou memes que brincam com distintos períodos no tempo, mas na verdade falam do presente. Numa dessas, vi um meme do clássico filme RoboCop de 1987 em que a trama percorre um futuro próximo na cidade de Detroit, EUA. Nela, o policial Alex Murphy (Peter Weller) é “morto” em serviço e acaba sendo ressuscitado como RoboCop, o ‘policial do futuro’. O meme basicamente brincava com a ideia de que “pelo menos você não morreu trabalhando e ressuscitou para continuar na labuta”, como ocorreu com Murphy. O que aliás, poderia ser um ótimo slogan neoliberal, “ganhe uma segunda vida e trabalhe em dobro”. Afinal, não há pobreza que resista a quatorze horas de trabalho, já imaginou duas vidas? 

RoboCop (1987)

O filme critica exatamente esse sentimento, o de que empresas estejam tomando todos os espaços da vida através de privatizações, corrupção e controle do Estado, talvez até do imaginário coletivo e aumentando drasticamente o grau de exploração. Não me parece muito distante da nossa realidade, vez que não há um governo que não tenha privatizado ou mesmo exista um espaço que não esteja na mão de monopólios, caso das chamadas bigtechs, redes sociais e especialmente o entretenimento, por exemplo. Ao ponto em que atores, roteiristas, diretores, entre outros trabalhadores de Hollywood estejam refletindo sobre a ideia da morte, ou melhor, de ser digitalizado e por consequência deixar de existir na indústria cinematográfica. 

Tudo indica que as grandes empresas do cinema estejam fazendo com os atores e artistas o que a OCP (Omni Consumer Products) fez com Murphy em RoboCop, ou até pior, pois nessas versões digitalizadas os atores e atrizes não receberão nem ao menos salário e terão a sua imagem reproduzida infinitamente. Talvez alguns grandes astros obtenham direito a royalties. Quem sabe até mesmo os roteiros não sejam mais escritos por seres humanos ou nem sejam mais necessários trabalhadores da área. A IA (Inteligência Artificial) está tomando o espaço das pessoas? Será que em algum tempo não perceberemos mais a diferença entre IA Generativa e humanos? As greves em Hollywood podem ser análogas a realidade de outras profissões ou não passam mais de um medo passageiro com as novas tecnologias? Se procura por respostas, observe o interesse de cada grupo envolvido, afinal é sim uma luta entre classes. 

Bryan Cranston – 25 de julho, Nova York. SAG-AFTRA (The Screen Actors Guild – American Federation of Television and Radio Artists). 

Atores em Hollywood, inclusive os astros, têm criticado os executivos que nada fazem, não possuem talento algum, mas lucram de forma exorbitante em relação a quem de fato produz. Já ouviu essa história? Você encontrará em uma das obras mais profundas já produzidas pela humanidade: nos memes de Larissa Manoela. Afinal de contas a empresa não é uma família? 

Parece que o velhinho de barba estava certo, tanto o que dividiu os pães quando aquele do manifesto. Enfim, os atores estão sendo ressuscitados e trabalharão infinitamente. Na minissérie Wandavision (2021) alguns destes artistas foram digitalizados e pagos somente por um dia, mesmo que suas imagens pudessem ser utilizadas em outras ocasiões. Uma das artistas relembra o ocorrido: “Levantem as mãos. Mãos à obra. Olhe assim, agora assim. Deixe-nos ver o seu rosto assustado. Faz cara de surpresa.”  

É muito interessante como nossos futuros são retratados e muitas vezes espelham a nossa realidade, caso do filme O Congresso Futurista (2013).

O Congresso Futurista, dirigido por Ari Folman e estrelado por Robin Wright, tinha como enredo a história de uma atriz em fim de carreira que seria digitalizada para que pudessem criar atuações originais sem a necessidade da própria artista, como parece ocorrer atualmente. Destacando que o filme é de 2013. 

Um dos personagens afirmaria: “no futuro o cinema incorporará o subconsciente do espectador”, antevendo um aprofundamento entre emissor e receptor, algo que ocorre em jogos eletrônicos através da participação, interação, assimilação de dados e agora com o envolvimento de uma nova geração de inteligência artificial. 

Ainda, a trama do filme faz uma crítica a uma indústria da cultura que subverteria a realidade ao incorporar simulações com base em uma indução de desejos nos espectadores. Para ficar mais claro, na película, é possível absorver uma espécie de droga que possibilitaria a imersão em espaços alternativos e a incorporação de personagens icônicos do cinema, uma metáfora para algo que poderia ser chamado de “metaverso”.

Ou seja, o produto critica tanto a forma ao atualizar os meios de exploração da arte, quanto a alienação projetada por esta indústria. No caso o cinema através de deslumbres sobre um possível mundo em que todos poderiam consumir e incorporar até mesmo os personagens interpretados por estes artistas, literalmente. Em alguns momentos até mesmo essa visão extrema e pessimista do futuro não parece ser tão distante assim, pois já ocorrem fenômenos do tipo no mínimo peculiares. Seres humanos estão interpretando NPCs (personagens não jogáveis), por sua vez, NPCs estão interagindo cada vez mais com características humanas em jogos, enquanto, ao mesmo tempo, empresas (Worldcoin) já estão escaneando os olhos das pessoas com o intuito de diferenciar humanos de robôs. Em que ponto isso vai parar? Faremos testes como replicantes em Bladerunner (1982)? Quanto de máquina estará no humano e ao mesmo tempo quanto de humano estará nas máquinas? Talvez numa próxima reflexão possamos discutir essa ideia. Até que ponto neoliberalismo busca mecanizar a sociedade? 

Por hora, caso tenha interesse em luta de classes e mais-valia, indico os seguintes filmes:

** Acabou de ser lançado no Netflix o filme chamado Paraíso (2023), de origem alemã, o que talvez incomode um pouco a língua, mesmo assim vale assistir. Você vai gostar desse filme se você tem interesse por ficção científica, sobre futuros próximos, crítica ao capitalismo e uma pegada ética, mesmo que superficial. Nessa trama pessoas ricas podem rejuvenescer e aumentar o seu tempo de vida através de uma espécie de transplante do tempo de vida de outra pessoa, geralmente pessoas pobres. 

Melhor assistir o trailer:

Paraíso (2023)

** “Preciso investir o meu dinheiro em comida hoje, para que eu possa sobreviver amanhã”, algo nesse sentido passou a ser uma crítica àqueles coaches que te ensinam a enriquecer nas redes sociais. O Preço do Amanhã fala disso. Você precisa trabalhar para ficar vivo mais algum tempo, literalmente. No mesmo sentido do filme anterior, o tempo passa a ser a moeda de troca na sociedade. Não há caminho para um futuro próspero, tudo não passa de sobrevivência, até que alguém com muito tempo entrega ao personagem principal o que valeria milhares de anos em tempo de vida. A possibilidade de revolução passa a ser um horizonte.

Assista o trailer abaixo:

O Preço do Amanhã (2011) 

Referências:

https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/estudios-imagem-de-atores-sem-pagar-diz-sag/

https://cinepop.com.br/marvel-digitalizou-rostos-e-corpos-de-figurantes-de-wandavision-para-reproducao-por-ia-432726/

https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2023/08/19/worldcoin-como-e-a-experiencia-de-ter-os-olhos-escaneados-por-um-orb.ghtml

https://www.pbs.org/newshour/arts/bryan-cranston-jessica-chastain-join-times-square-rally-of-striking-actors-and-writers

https://www.rollingstone.com/tv-movies/tv-movie-news/sag-aftra-strike-proposals-amptp-counterproposals-list-actors-hollywood-1234790077/

“É só isso que eu tenho”. O sucesso da adaptação de The Last of Us para as telas da HBO

Tente ler escutando a trilha sonora abaixo: 

Se você jogou The Last of Us Part I (2013) irá lembrar que existia um troféu chamado “É só isso que eu tenho”. Para conquistar esse troféu você tinha que encontrar momentos no game que dessem oportunidades para a Ellie contar piadas, como as representadas nos episódios da adaptação feita pela HBO. Lembra? A que eu mais gosto é essa: “As pessoas fazem piadas sobre o apocalipse como se não houvesse amanhã”

Acho que a mensagem da piada da Ellie traz uma ideia genial, afinal em todo o meu tempo de vida eu convivi com filmes, séries e jogos sobre exatamente a mesma temática, zumbis e mundo apocalíptico. Ou seja, as pessoas fazem filmes, jogos e séries sobre o mundo apocalíptico como se não houvesse amanhã. Produções que me lembro e joguei, sem falar em séries que assisti como The Walking Dead, foram os clássicos da série Resident Evil, ou os mais recentes, ou não tanto assim, Days Gone e Day Z. Jogos de sobrevivência, aventura, horror, mas que raramente conseguiram trazer uma trama tão profunda como a construída por Niel Druckmann em The Last of Us. 

Tanto nos jogos como na adaptação cinematográfica a narrativa envolve uma pandemia onde o fungo denominado cordyceps elimina a humanidade transformando boa parte dos humanos em uma espécie um pouco mais sofisticada de zumbi, tendo algumas diferenças entre a série e o game. Porém, o que importa é a busca por sobrevivência, abrigo, armas remédios, mantimentos em um ambiente inóspito e injusto, mas que tem como ênfase as relações humanas, entre os personagens, suas dores e experiências nesse mundo.  

Uma vez ou outra esse tema é potencializado, o contexto de sua produção tanto induz como se alimenta das expectativas presentes na sociedade. Mas quais anseios podem estar presentes nas interações entre os personagens de Ellie, Joel, Sarah, Tommy, Tess, Marlene, entre outros da série? Será que assistimos o futuro ou é apenas o nosso sentimento e preocupações do presente literalmente projetados numa tela? Além disso, por que produzimos tanta ficção apocalíptica? Seria o nosso pessimismo no presente? 

The Last of Us HBO: T1E9

“A ficção científica não nos projeta para o futuro, ela nos relata estórias sobre o nosso presente, e, mais importante, sobre o passado que gerou o presente. Contra intuitivamente, a ficção científica é um modo historiográfico, um meio de descrever simbolicamente sobre história”.

(ROBERTS: 2000, p. 82)

Mesmo que a série da HBO não seja ficção científica, a reflexão de Adam Roberts acima poderia perfeitamente ilustrá-la. Afinal, esse modo de narrar um mundo fictício, exagerado emocionalmente, excessivo em seus perigos, entre estaladores e humanos canibais, destaca um mundo sem estruturas e desgarrado de leis. Especialmente na maneira de apresentar os diálogos existenciais entre os personagens, explicitam do que realmente se trata essa história e obviamente não é sobre “zumbis” ou estaladores. 

Nas representações futuristas é o exagero do nosso próprio tempo que está em questão, são as preocupações ou dores cotidianas do nosso mundo que estão sendo mostradas. O que está lá, está aqui. Daí, talvez, um dos vários motivos dos jogos e a série terem atingido tamanho sucesso, um fruto do seu tempo. O excesso da ansiedade e das expectativas em meio a um futuro nunca consistente, um imaginário que não consegue alicerce no presente? 

Nossa geração não consegue ver um futuro otimista, nosso contexto não é seguro, tudo parece uma selva e como dizia Mark Fisher, está ocorrendo um lento cancelamento do futuro. Se na década de 2000 tínhamos o passado como referência ao escutarmos músicas que tentavam reproduzir de forma nostálgica e artificial os anos 1960, na década de 2010 parece que estamos reproduzindo um presente pessimista através de ficções apocalípticas. Será que as produções audiovisuais atuais não passam de uma versão do grunge da década de 1990? Mesmo assim, exatamente por esse motivo, momentos de felicidade na simplicidade são destacados no game e na série. Esse mundo desestruturado, sem leis, sem quaisquer esperanças faz com que os personagens concentrem nas pequenas e raras experiências de felicidade, como na famosa cena da girafa entre Ellie e Joel. 

The Last of Us HBO: T1E9

No quarto episódio, em direção à Kansas City (no game é Pittsburgh), Joel e Ellie conversam no carro sobre os caminhos de Tommy, mesmo que de uma forma pessimista e conformista com o mundo, Joel afirma que a referência na vida é a família, já que o restante da civilização desmoronou. Como Joel salienta, Ellie não viveu ainda o suficiente e tem evidentemente expectativa futura, no que Joel já viveu bastante e, portanto, tem muito passado em seu presente. Aliado a isso, sabemos que Joel não seria a melhor pessoa para dar conselhos, seu personagem não carrega consigo valores éticos elogiáveis. Mesmo assim, em um mundo pós-apocalíptico não há muito o que medir. O que interessa é que seria muito possível encontrar diálogos e reflexões como essas em qualquer ambiente cotidiano de nossas vidas. 

No primeiro game muitos fãs reclamaram por não poderem decidir o final do jogo e em parte não concordarem com a direção egoísta que Joel tomou. Para o professor de Ética em Video Games da Universidade de Utah, Dr. Jose P. Zagal, todos os personagens tem decisões realistas e não utópicas como nas narrativas típicas de heróis, o que faz com que se aproxime do público. Qual caminho você escolheria?  Por um lado, Marlene toma uma decisão sem ao menos consultar Ellie, por outro, o pai da Abby, Jerry Anderson, nem cogitou pensar caso fosse sua filha e, por fim, Joel viu seu trauma de perda se repetindo e o que Ellie pensava sobre sempre será um mistério. 

“No contexto de um jogo como The Last of Us, é um mundo distópico, pós-apocalíptico, não há mais civilização,” Zagal continua: “Isso é tematicamente apropriado, todos esses personagens vão ser meio quebrados, violentos e perigosos”.

Será que vivemos num mundo como se não houvesse amanhã? Será que sentimos que toda a civilização já deixou de existir e o que sobrou são os familiares, os amigos próximos e o restante nós já abandonamos? Qualquer possibilidade de crença no coletivo ser apenas uma ilusão? Será que caminhamos por um mundo distópico sem perceber? Como nas interações e experiências de personagens como Joel e Ellie? Se sentimos identificação com a série é porque de alguma forma existe muito presente naquele futuro que é narrado. 

The Last Of us HBO: T1E4

A piada sobre o apocalipse acima particularmente ocorreu no último episódio da série, a qual atingiu 8,2 milhões de espectadores mesmo tendo sido transmitida no horário do Oscar e alcançado a maior audiência que a HBO Max já teve na América Latina e Europa. Os recordes de audiência ou mesmo as avaliações que em momentos ultrapassaram Breaking Bad (2008) comprovam que a série obteve sucesso, satisfez os gamers e os novos fãs, algo que nenhuma outra adaptação de game jamais fez. Talvez isso tenha ocorrido pelo motivo de que o game tenha seguido a mesma estrutura do cinema, muito antes de existir a possibilidade da adaptação. Ou talvez, por ter criado uma narrativa em que emoções intensas entre os personagens reflitam diretamente em proporção as interações humanas em nosso cotidiano em meio a um mundo também inóspito. 

 Novas temporadas estão garantidas, a segunda parte do game será dividida e teremos ainda uns dois anos de espera. Sendo assim, desde 2013 The Last of Us está retratando o seu próprio tempo, a década de 2010, os sentimentos de uma sociedade que pouco sonha e sente de forma profunda o presente. Já sinto saudades e acho que estou quase conseguindo substituir Alice in Chains por The Last of Us, bora jogar… 🎮 🧟‍♂️ 🧟‍♀️ “É só isso que eu tenho”. 

Dica: assista o filme A Estrada (2009) dirigido por John Hillcoat e estrelado por Viggo Mortensen. O filme foi inspirado no livro de mesmo nome e que, por sua vez, ambos inspiraram a criação do jogo The Last of Us. Particularmente eu achei bem mais visceral e evidentemente realista do que The Last of Us, tanto nos jogos como na série. 

Trailer – A Estrada (2009).  Plataforma: HBO MAX 

Observação: Essa breve reflexão não teve intuito em discorrer sobre o que já foi feito em todas as plataformas, comparações entre o jogo e a série, se as cenas são em CGI ou não, quais atores desenvolveram determinados personagens etc. Portanto, teve como objetivo uma reflexão de caráter filosófico, histórico e ético sobre o tempo em que vivemos e sobre o tempo em que nos identificamos através dessa bela obra de arte. 

Referências:

FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2022. 

ROBERTS, Adam. Science Fiction. London: Routledge, 2000. 

Entrevista com o professor de Ética em Video Games da Universidade de Utah, Dr. Jose P. Zagal:

http://bit.ly/40rgLXo

Entrevista com Simon Reynolds – Retromania: Pop Culture’s Addition to its Own Past: 
http://bit.ly/3n8NbHV

Dados, crítica e avaliações: 

http://bit.ly/3LGQ9O5

http://bit.ly/3yWLGzq

Muito além dos games: como os jogos podem aprimorar o ensino e o sentido da história


Ao começar a jogar o game Assassin’s Creed Syndicate você logo se deparará com a seguinte frase: “Inspirado em eventos e personagens históricos, esse trabalho de ficção foi concebido, desenvolvido e produzido por uma equipe multicultural, de várias crenças, orientações sexuais e identidades de gênero”. 

Após, verá efeitos visuais que representam o tema histórico do game, algo posterior ao contexto da Revolução Industrial. Cenários com fábricas, a cinzenta Londres e trilhos de trem passam a ser o horizonte do ambiente jogável.  Personagens como Alexander Graham Bell, Charles Darwin, Dickens e Karl Marx cruzarão o seu caminho nessa história. Reflexões sobre o contexto histórico, preocupações sociais ou econômicas aparecerão entre missões para retomar os bairros de Londres e claro, muito parkour, mas também monólogos como esse a seguir: 

“Senhores! Este chá foi trazido até a mim da Índia por um navio, depois levado do porto até a fábrica, onde foi embalado e transportado por uma carruagem até a minha porta, desembalado na despensa e trazido até aqui em cima para mim […] Eles vão trabalhar em suas fábricas do mesmo modo que seus filhos também trabalharão”. 

Quais aspectos da história do século XIX poderiam ser analisados em interações desse tipo? Questões geopolíticas? Por quais razões o chá é trazido da Índia? Logística e princípios da globalização? Questões de classe, trabalho e renda e suas interconexões? Como entender as motivações dessas interações no jogo, ou melhor, como esses games são construídos? O que o jogo mostra, omite, destaca, como os mapas foram modificados ou cenários e suas razões podem levar o estudante a questionamentos e a um aprofundamento sobre determinada conjuntura histórica. 

Entretanto, devemos lembrar, Assassin’s é uma ficção inspirada em eventos ou personagens históricos, não parece ser de fato “história”.  Para muitos historiadores o estudo da história deve se ater aos fatos ou dados extraídos de forma literal de fontes históricas do mesmo modo em que os pesquisadores do século XIX o faziam. Porém, compreender a história deixou de ser análise de dados há algum tempo e passou a ser a construção de uma consciência histórica relacionada ao tempo presente. São as memórias coletivas do presente que ordenam o nosso passado. 

O historiador estadunidense Hayden White diria o seguinte sobre a relação entre ficção, narrativa e história:

“É possível produzir um discurso imaginário sobre acontecimentos reais que pode não ser menos “verdadeiro” por ser imaginário”.

Narrativas e representações do passado mesmo que ficcionais podem formar o nosso imaginário sobre o passado, para o bem ou para o mal. Por exemplo, games que retratam conflitos militares podem moldar identidades nacionais através de mobilizações de sentimentos e empatia com personagens e tramas de determinadas nacionalidades. Compreender como o imaginário ou a ficção é construída também é compreender a realidade histórica do seu tempo. Por sua vez, ao caminhar por esse processo é possível tanto para o professor de história quanto para o estudante elaborar mecanismos de um estudo crítico sobre temas históricos.  

Beyond Gaming: How Assassin’s Creed Expanded for Learning –
Games for Change 2018

As simulações digitais já têm um tempo, também passaram a se preocupar com um caráter pedagógico, educacional e com um objetivo de construção de uma narrativa histórica através de pesquisas acadêmicas. A Ubisoft aproveitou o sucesso da série Assassin´s Creed e criou expansões com caráter educacional sobre a história da Grécia, do Egito e do período Viking. A mesma empresa em parceria com a TV francesa criou um documentário interativo chamado Lady Sapiens: Breaking Paleolithic Stereotypes, que retrata o período paleolítico através de novos vestígios arqueológicos que mudam a visão sobre o papel da mulher na pré-história. Com base no jogo Farcry – Primal e por meio da realidade virtual, o expectador pode tomar decisões e aprender ao interagir com o documentário. 

Lady Sapiens: Breaking Paleolithic Stereotypes

Quais vantagens essa mídia poderia trazer para aprendermos sobre história? Shaneila Saeed, diretora da escola Digital Schoolhouse em Londres, usaria duas expressões para definir a especificidade da potencialidade educacional nos games: empatia e envolvimento. Obviamente, a conexão desses fatores através da interação. Ou seja, é a partir da participação do estudante na história através de um meio prático e o sentimento de empatia que a cognição histórica e a imaginação sobre um contexto ou conjuntura podem ser catalisados. Muito mais do que dados, datas ou nomes a serem memorizados, mas sim a compreensão de uma conjuntura histórica através do envolvimento com os personagens e o enredo das narrativas históricas, mesmo quando ficcionais. 

Ancestors: The Humankind Odyssey – Launch
Gameplay Trailer

Em Ancestors: the Humankind Odyssey, produzido pela Panache Digital Games e jogável na maioria das plataformas, você tomará o controle de um avatar, um símio ancestral do homo sapiens há cerca de 10 milhões de anos atrás, em algum lugar na África. Com base em pesquisas recentes sobre a evolução de nossa espécie o jogador poderá criar a sua linhagem e enfrentar os desafios da sobrevivência.  A imersão do jogador ocorre através de experiências que incluem descobertas de alimentos, de ferramentas, lógica, evolução dos sentidos, metabolismo, comunicação ou trabalho em equipe. Detalhe para as possibilidades de caminhos diferentes de evolução, trazendo visões críticas para a compreensão de aspectos biológicos e sociais da humanidade. 

“A hierarquia dos sentidos com a dominação e a hipertrofia da vista é um resultado do processo de civilização”.
Christoph Wulff

Tal qual a nossa evolução como espécie, os nossos sentidos de captação do que é real, também foram modificando ao longo do tempo. Estamos em um novo processo de modificação de sentidos, agora em direção à imersão e a uma convergência de mídias que expandem o ato de experienciar o mundo, especialmente as simulações digitais. No campo do ensino da história, imaginar, experenciar e sentir outros tempos podem ser caminhos para uma nova forma de pensar a história, de viver a história, de aprender e ensinar a história. 

Macacos, NFTs e Renascimento

O historiador Georges Didi-Huberman afirma que a arte como entendemos hoje foi inventada em um período histórico que conhecemos como Renascimento Cultural. Foi através de uma redefinição de valores e contraposição de experiências que nós passamos a recriar, revalorizar e refazer a arte.
É nesse período de transição entre o medievo e a idade moderna, que valores vistos como modelos haviam de se transformar. Os artistas passaram a assinar as suas pinturas, bustos, estátuas de modo a identificar aquele objeto consigo mesmo, tanto em sua experiência artística ao produzi-lo, quanto em seu valor material ao vendê-lo, especialmente por ser uma produção única. As obras de arte então passaram a simbolizar os valores individuais dos tempos que estavam por vir.

“O homem, que também é um pequeno mundo, contém em si mesmo todas as perfeições gerais encontradas pelo mundo inteiro”
Marcos Vitrúvio Polião

É através dessa conexão entre o indivíduo, valores individualistas e esse espelho entre o natural, o mundo e o próprio humano que a arte europeia foi fundada. Mas o que torna a arte única, especial ou atemporal? O que de fato valoriza a arte em termos também materiais?

Quando visitei o MALBA (Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires) e observei a nossa Abaporu, de Tarsila de Amaral, eu confesso que não consegui apreciar as formas ou a técnica investida por Tarsila, talvez apenas o que aquela fonte histórica simbolizava ao nosso país. Uma expressão de um tempo histórico, de uma busca por identidade nacional, de uma negação de valores vistos como eruditos e europeus, mas sobretudo um reflexo de um tempo e da busca por uma cultura original e brasileira. Como medir o valor de uma fonte histórica dessas?

Esses questionamentos me fizeram buscar os motivos da valorização de produções artísticas e por quais razões algumas delas também percorreram o caminho contrário ao serem só valorizadas após a morte de seu autor, como o clássico caso de Vincent van Gogh, por exemplo. Mas como comparar produtos em primeira vista de estética tão simples como as NFTs (non-fungible tokens) com as chamadas artes “tradicionais”? Aliás, o que são esses produtos vendidos como arte e o que de fato significa essa expressão?

O primeiro ponto para essa compreensão é percebermos que os chamados “tokens não fungíveis” (NFTs) servem para tornar uma determinada obra digital única. Como um código ou um contrato certificando que aquela produção é singular, tal qual os renascentistas faziam ao assinar as suas obras. Ou seja, mesmo que existam milhares de cópias online de uma determinada imagem, a NFT específica daquela imagem terá uma identificação e possivelmente um proprietário. Por exemplo, existem várias cópias da obra chamada Noite Estrelada (1889) de van Gogh, porém a original é única e está exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Portanto a raridade do produto, a individualidade da propriedade, o interesse de colecionadores ou investidores e a exclusividade de expô-lo o torna ainda mais valorizado.

Bored Ape Yacht Club (BAYC) é uma das séries mais famosas criadas recentemente e vendida a vários colecionadores e famosos como Neymar, Justin Bieber ou Eminem. Só Neymar gastou 1,1 milhões de dólares em dois desses ativos. A coleção tem 10 mil macacos entediados que passaram a valer cerca de 1 bilhão de dólares e apenas um deles foi vendido em Londres, numa casa de leilões tradicional por cerca de 3,4 milhões de dólares, tal qual quaisquer outras obras artísticas vendidas no mesmo espaço.

É possível observar que as NFTs têm servido também como símbolo de status ou de exclusividade. Os mecenas no período da renascença tinham o mesmo objetivo, destaque, individualidade, status e por essa razão patrocinavam seus artistas. Os valores sociais ainda são os mesmos, as formas são diferentes.
No lugar de uma pintura rara, um Bored Ape no perfil da rede social e a clareza de que ele pertence a você. Será que outras formas de sociabilidade e valorização do indivíduo podem também ser transferidas para o mundo online? Quais outras simulações podem se materializar no mundo imaterial? Essas experiências têm esclarecido que o valor das coisas, não são as coisas e sim o imaginário no qual aquele objeto ou produto foi construído. Em alguns momentos realmente valem a história de um país, em outros apenas um status momentâneo ou um investimento especulativo.

Metaverso: simulações do real ou apenas mais uma camada de ilusão?

O termo “metaverso” surge no contexto da literatura cyberpunk na virada da década de 1980 para 1990, especialmente na obra de Neal Stephenson chamada “Snow Crash”. Nessa história um entregador de pizza coabita em mundos paralelos, entre a sua realidade simples e cotidiana e a ficção em um mundo virtual onde incorpora a personalidade de um samurai. Nessa mesma perspectiva o filme “Calmaria” lançado recentemente e estrelado por Matthew McConaughey, narra a história de um pescador que no decorrer da trama percebe que faz parte de um jogo programado a partir dos anseios, frustrações, traumas e experiências de uma criança no computador de seu quarto. No mesmo estilo de “O Show de Truman”, estrelado por Jim Carrey, o real e a ficção convivem, confundem o espectador e na verdade refletem as experiências e sociabilidades do nosso mundo.

Wake up, Neo…

Apesar das críticas de Jean Baudrillard, o filme Matrix (1999) teve também como inspiração a obra “Simulacros e Simulação” de 1981, ao ponto de homenagear o autor em uma das primeiras cenas do filme quando Neo recolhe alguns discos do seu trabalho como hacker. Por meio de uma trama mais próxima do mito da caverna de Platão, as irmãs Wachowski buscaram também criar um metaverso através de um mundo real controlado pelas máquinas e um mundo fictício em que os humanos estariam hibernados através de simulações e softwares com o intuito de extrair a energia desses corpos dormentes. Mesmo que de forma binária, Matrix buscou explicitar a alienação das massas através da analogia do capitalismo e o controle das grandes corporações pelo meio das propagandas, do consumo e do próprio entretenimento. Como diria Baudrillard em uma entrevista sobre o filme:

“’Matrix’ é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”

Talvez essa reflexão tenha se aproximado mais do último filme “The Matrix Resurrections”, pois no próprio roteiro é perceptível uma crítica à película ao destacar que o filme poderia ter sido produzido pela própria Matrix, só que agora em forma de um jogo eletrônico. É com base em um game dentro da Matrix que Neo acaba por perder a consciência do real e passa a ser o criador desse produto de entretenimento em que no sentido final busca alienar mesmo aqueles que pareciam ter sido libertos.

Mas afinal o que a ficção tem a ver com o real? Ou o real tem a ver com a ficção?

Para o sociólogo Jean Baudrillard a nossa experiência de vida está imersa por símbolos transmitidos através da mídia e que faz com que os produtos tenham sentido em ser consumidos. A tecnologia, a cultura, a mídia e o consumo produzem imaginários sobre o real ao ponto de transformá-lo em algo híbrido e difuso entre o que é fidedigno e o que é imaginado sobre a realidade. Tal vivência no fim faz com que percamos a percepção sobre a diferença do que é simulado e do que é real.

No mesmo sentido o metaverso parece ser mais uma camada do que já vivíamos, afinal games como Decentraland ou The Sandbox, simulam interações humanas, customização dos usuários, construção e compra de terrenos virtuais, colecionáveis ou NFTs com moedas virtuais e que só adquirem valor real através de uma construção de símbolos e sinais, tal qual no mundo físico. Gigantes como a Nike já compram empresas como a RTFKT, uma fabricante de tênis virtual, a Adidas já investe na construção do seu espaço no The Sandbox, a Microsoft anunciou avatares 3D para reuniões no Teams e até mesmo shows como do músico Travis Scott já ocorrem e alcançam milhões de espectadores. Isto pode significar que o metaverso também repete o modelo de criação de sentido e constructos em produtos consumíveis, mesmo que sem valores físicos, agora dentro do um mundo online.

Portanto a possibilidade de produção de renda por grandes empresas e por pessoas comuns também atrairá consumidores que buscam uma vivência paralela à sua experiência e, por sua vez, uma camada mais profunda de entretenimento ou mesmo alienação ainda que agora de forma literal. O que nos faz refletir até que ponto essas simulações podem impactar o real. De que forma essas simulações nos deixarão mais imersos na sociedade de consumo? Quais fantasias e ilusões serão criadas nessas simulações? Quais aspectos psicológicos esse universo usará como estímulo e forma de atração de usuários? Será possível em algumas décadas passarmos mais tempo no mundo “simulado” do que no “real” e por consequência hibernados tal qual na metáfora de Matrix? Ou isso já ocorre sem mesmo percebermos através da mídia?

Imagem capturada no game Decentraland.
Fonte: https://decentraland.org/

Super-heróis, imaginário ou realidade? Como a ficção em HQs transforma e representa a diversidade do real

Os imaginários contados através do cinema, dos games, das HQs, das peças de teatros, entre outras expressões artísticas, permitem nos transportar no tempo, experimentar emoções que fazem com que nossa existência expanda as meras experiências cotidianas. Em alguns momentos visto como escapismo, alienação e mero entretenimento, as produções artísticas podem também produzir identificação, representação e especialmente a empatia. Talvez essa última característica seja o que mais incomode alguns setores da sociedade. 

* Se estas criações são apenas ficções, por quais motivos geram um impacto na realidade? Ou melhor, qual seria a razão que leva uma ficção de um super-herói como Superman a boicotes, protestos, perseguição de artistas e outros absurdos incontáveis dependendo de qual história busca contar?

Nós historiadores temos a prática de vermos e identificarmos aspectos da realidade mesmo em produções de ficção ou entretenimento. É possível perceber a relação entre um tempo histórico com a sua produção cultural, seu impacto na sociedade e, por sua vez, a influência desta sociedade na produção de cultura. As primeiras HQs no formato em que conhecemos surgiram ao redor da virada do século XIX, como Yellow Kid de Richard Outcault em 1895, mas os quadrinhos mais conhecidos apareceram em 1929 com Tarzan, Flash Gordon em 1934 de Alex Raymond, The Spirit em 1940 e Batman lançado em maio de 1939 pela National Publications, atualmente DC Comics. 

Essas histórias sofriam influência direta do seu tempo, por exemplo, em Batman podemos observar uma Gotham City decadente, tomada pelo crime, extrema desigualdade e desesperança, o que podemos perceber como fruto da década de 1930, pós crise econômica de 1929 e seus reflexos na cidade de Nova York. Outros exemplos declaram o seu tempo de publicação, como a edição de julho de 1942 quando Superman surge segurando o imperador japonês Hirohito e Hitler na capa da revista e ao longo da HQ defende valores americanos, critica visões racistas ou mesmo defende a democracia em contraposição ao autoritarismo dos países do eixo na Segunda Guerra Mundial. Além de percebermos também essas visões em Capitão América na edição de março de 1941, é possível ao longo do século XX captar outras expressões históricas nas HQs.

É em 1963, após o discurso de Martin Luther King em Washington, no auge da luta dos direitos civis, liberdade sexual ou contra a guerra no Vietnã, que é publicada a primeira edição de X-MEN. Nessa história a metáfora do direito a igualdade entre as pessoas ficou explícita na trama, afinal os mutantes lutavam por seus direitos e com o tempo passaram a ter personagens e lideranças como o Professor Xavier e Magneto, uma clara referência a Martin Luther King e Malcolm X. Poucos anos depois Stan Lee e Jack Kirby incluiriam o herói T’CHalla, conhecido como Pantera Negra numa edição do Quarteto Fantástico o que representaria a população negra e suas heranças africanas. Esse grupo de heróis claramente representam e representavam a diversidade de minorias, suas lutas por igualdade de direitos e abertamente em suas narrativas fazem críticas a visões conservadoras e preconceituosas. É somente em 1979 que John Byrne cria o personagem Estrela Polar, o primeiro herói gay da Marvel, que de forma paralela a luta da comunidade LGBTQIA+ nos EUA foi ganhando força em sua representatividade também nos quadrinhos.

A cultura induz, mas muitas vezes é induzida a refletir o seu entorno através de histórias que cative, gere identificação com as transformações do seu tempo e principalmente envolva o consumidor daquela história através da empatia. Não por acaso temos grupos conservadores que tentam censurar histórias como em “Vingadores – A Cruzada das Crianças” na bienal de São Paulo em 2019 ou mesmo recentemente devido a bissexualidade Joe Kent em Superman: Son of Kal – El. 

As histórias narradas através de super-heróis são histórias de lutas, lutas por direitos, contra o preconceito, pela justiça ou por um mundo melhor. Para isto fazer sentido é preciso que essas lutas façam parte das reinvindicações reais da sociedade e tragam empatia, aproximação e identificação por aqueles que sofrem a injustiça do seu tempo e talvez por esse motivo é que as resistências a essas transformações sejam tão fortes.

Estrela Polar, casa com Kyle Jinadu nas páginas de “Astonishing X-Men” (2013)

Reordenando a história através da ficção científica em Arcanjo e Neuromancer de William Gibson

Todos conhecem a máxima de George Orwell em 1984:
“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

Mas afinal o que isso significa? É possível perceber e materializar essa reflexão em ficções como as de Gibson em Neuromancer ou mesmo na HQ Arcanjo?

O futuro distópico de 1984 criado por George Orwell na década de 1940 reflete um controle por parte de um estado totalitário, o qual vigia, censura e induz os indivíduos a pensar de modo uniforme. Essa trama do controle do pensar ou do imaginário coletivo é recorrente em narrativas que buscam refletir sobre tempos históricos diferentes, especialmente em ficções científicas futuristas. Em alguns momentos essas histórias refletem desigualdades do presente como no filme Elysiun (2013) do diretor Neill Blomkamp, estrelado por Matt Damon. Em outros, buscam em forma de reflexão explicitar um processo de construção de uma consciência histórica através de analogias ou metáforas filosóficas.

Como assim?

Se você conhece o seu passado, você tem uma ideia do seu presente e, por consequência o caminho que quer seguir, certo? E se alterássemos o seu passado, isso mudaria o seu caminho?

William Gibson é considerado, ao lado de Bruce Sterling e John Shirley, um dos fundadores do gênero cyberpunk, um universo futurista, tecnologicamente avançado, crítico e pessimista em relação às nossas expectativas de futuro. Retrata ambientes de uma sociedade falida, personagens com implantes cibernéticos e a possibilidade de entrar na matrix, ou melhor, no ciberespaço, termo cunhado por Gibson e reproduzido em inúmeras outras produções, inclusive acadêmicas. Seu livro de estreia denominado Neuromancer, publicado em 1984, na mesma década do filme Blade Runner, além de vencer a tríplice coroa da ficção científica, influenciou o filme Matrix de 1999 ao relacionar os dois mundos, o “real” e o “virtual”, também o game Cyberpunk 2077 lançado em 2020 ao retratar a estética neon das cidades orientais, os aparatos cibernéticos ou as consciências dentro do ciberespaço.

Esses ambientes dão vazão para reflexões sobre o tempo histórico ao saltarmos para o futuro, sobre a consciência humana ao entrarmos na matrix e a própria compreensão do nosso tempo presente ao nos distanciarmos através de metáforas ou analogias futuristas. No filme Matrix, no game Cyberpunk 2077 e em Neuromancer, por exemplo, podemos perceber uma crítica ao sistema capitalista do presente, apesar de ser uma história sobre o futuro. Como dizia Saramago:


“É preciso sair da ilha para ver a ilha”.


Na HQ Arcanjo a construção do tempo histórico é usada como ponto de partida para um mundo destruído pela guerra nuclear e com tecnologia para viajar no tempo e reconstruir novos futuros possíveis. É através de uma máquina chamada Splitter que lideranças políticas americanas viajam no tempo para reordenar o passado de modo a controlar de forma ainda mais restrita o presente. Duas missões então são enviadas para o contexto da Segunda Guerra em 1945, uma liderada por forças políticas em busca de mais poder e outra de resistência que busca impedir que o futuro ainda possa piorar. Trajes tecnológicos, linhas do tempo paralelas, conspiração, militarismo, espionagem e o contexto da Segunda Guerra, relacionam um roteiro cinematográfico no decorrer de cinco volumes com uma crítica sobre o controle das elites, a destruição do planeta e o poder que envolve inclusive, reconstruir o passado e controlar o futuro.

Será possível reordenar o nosso imaginário sobre o passado? Através de que meios o passado é contado? Se caso o passado for manipulado, quem o manipulou? Quem é beneficiado? Quais direções estamos tomando se nosso passado é volátil?

O mais instigante da ficção científica, são as perguntas e questionamentos que ela deixa na leitura sobre o nosso próprio mundo. Recomendo a leitura da HQ Arcanjo e do livro Neuromancer, para que você leitor, traga aqui as suas próprias reflexões sobre história, tempo e quadrinhos.

Seriam os jogos digitais através de suas narrativas ou representações uma nova forma de arte?

Imagem da capa: [The Last os Us Part 2]

Os games como arte geraram e ainda levam a disputas homéricas e a debates acalorados enquanto ocupam o espaço da indústria cultural, ao lado do cinema e muitas vezes à sua frente no que condiz ao alcance e ao seu consumo. Mas afinal, quais critérios definiriam a introdução a esse seleto grupo? Por quais motivos na história sempre temos resistência a novas formas de contar, de narrar, imaginar ou representar o nosso mundo?

Muitas vezes o princípio dessa discussão está ligado a uma hierarquia entre as formas de nos expressarmos artisticamente. Lembra daquele seu amigo que sempre diz que o livro é melhor do que o filme? Mas na verdade sabemos que as formas e o meio em que essas histórias são narradas não podem ser comparadas. Talvez essa aversão ao novo esteja ligada com o afeto que desenvolvemos em relação ao modelo de arte que estamos mais habituados.
Foi em 1923 em que o intelectual italiano Ricciotto Canudo propôs a inclusão do cinema como sétima arte, logo após a dança e, da mesma forma, ocorreram resistências. Hoje temos o cinema como uma expressão genuinamente artística, com escolas e movimentos consolidados, acompanhamos os principais prêmios da academia, temos roteiristas e diretores favoritos.

Mesmo assim, quando nos deparamos com uma nova forma de contar histórias, muitas vezes vista como puro entretenimento, também temos as mesmas resistências. Canudo afirmava que o cinema era capaz de inovar e difundir as outras artes através da união de outras mídias. Os games não fazem o mesmo? Aliás, além de incluir todas as outras mídias, adicionam a variável ‘interação’. Isso não seria inovar e projetar uma imersão ainda mais profunda através do ato de emocionar e imaginar?

Vamos à prática!

“A maneira como o passado recebe a impressão de uma atualidade mais avançada é dada pela imagem na qual ele está compreendido.”
W. Benjamin, Paris, Le livre des passages, 1927 – 1940.

Caso seguirmos literalmente a reflexão dada por Benjamin, faremos isso com classe. Uma das imagens interativas mais revolucionárias do mundo dos games se chama The Last Of Us e The Last of Us Part 2. Nessas duas histórias você faz parte de um mundo pós-apocalíptico em que a sobrevivência e a ação tomam a narrativa através de dramas de personagens que fazem com que o jogador fique imerso e se envolva no game além das possibilidades de jogabilidade. Talvez esse tenha sido o principal fator de sucesso do jogo, apesar de ter uma jogabilidade e gráficos excepcionais, a história é a verdadeira motivadora.
A roteirista Halley Gross destacou: “Mas espero que [The Last os Us Part 2] faça com que os jogadores terminem o jogo e vejam pessoas com as quais eles talvez não sentiriam nenhum tipo de conexão e digam ‘é, talvez haja algo com a qual eu possa me identificar.”

É nesse processo que personagens como Ellie, Abby, Lev e Dina trazem contradições ao espectador através de dramas que envolvem gravidez, sobrevivência, vingança, família e gênero. Especialmente na parte dois, devido aos caminhos dos personagens Abby e Ellie, você revistará seus próprios valores morais ao se deparar com atitudes no mínimo controversas. Após experimentar as emoções desse jogo, ou assistir a série da HBO que está em produção, eu te convido a vir aqui refletir sobre o que seria arte e se os games fazem parte desse universo.