Cultura como profissão e existência: conversa com a bailarina e artista visual Nicole Leite

Nicole Leite é natural de Santos (São Paulo) e desde criança por influência da mãe, sonhava em ser bailarina.
Estudou na Escola de Bailado (Santos) e dançou profissionalmente na Companhia de Dança da Cidade de Santos. Em 2020 ingressa no curso superior de bacharel em Artes Visuais pela Univille trabalha como mediadora cultural no Instituto Internacional Juarez Machado. No ano de 2022, é eleita conselheira municipal de cultura pela setorial de artes visuais. Em parceria com outros artistas, cria o coletivo Entremeios.
Atualmente, também participa do coletivo Projeto Labart como intérprete-criadora em dança contemporânea e da Associação de Artistas Plásticos de Joinville – AAPLAJ. Na arte-educação é educadora em uma ONG que desenvolve atividades de contraturno cultural no bairro Morro do Meio.

Hoje aos 23 anos ela já dançou profissionalmente em várias cidades e está em busca do tão sonhado diploma de Bacharel em Artes Visuais. Além da vida dedicada a dança e as artes, entendeu que para ser artista em um país marcado pela desigualdade social, é preciso atuar em várias frentes, como a arte-educação e a política cultural.

Aluna da Escola de Bailado de Santos

Arte na Cuca: Você comenta sobre a “Escola de Bailado Municipal de Santos” e a formação que considera mais profissional. Como foi essa época da sua vida?

Nicole Leite: A escola contribuiu muito para minha formação. Foi um grande incentivo, afinal estudei de forma gratuita graças a uma política pública de acesso a cultura. A instituição é administrada pela Secretária de Cultura de Santos e possui em sua estrutura a Companhia Balé da Cidade de Santos, um grupo profissional que também é fruto de politicas públicas, sendo composto por bailarinas mais experientes e que recebem um salário para trabalhar na Cia todos os dias, seis horas diárias. Fui convidada para ingressar nesse grupo aos 16 anos, e na época eu estava no sétimo ano da minha formação. Tanto a escola de bailado quanto a sede da companhia estão localizadas no Teatro Municipal Brás Cubas, um equipamento cultural que concentra vários outros equipamentos públicos administrados pela SECULT de Santos, como a cinemateca, cias de teatro, galeria de artes visuais, entre outros. Ou seja, meu cotidiano era extremamente cultural.

Foi a escola de balé que me oportunizou uma imersão enorme no universo da dança. Fiz grandes amizades, dancei em várias cidades, como a capital São Paulo/SP e também fora do estado, nas cidades de Florianópolis/SC e Joinville/SC. Não vou dizer que foi uma época perfeita, o balé é duro, e dançar profissionalmente é mais ainda, mas sou grata demais pelo privilégio de ter começado minha vida profissional já dentro do setor artístico. Os únicos empregos que eu tive até então foi de recepcionista de uma dentista e vendedora de jornal! (risos).

Arte na Cuca: Na sua opinião, quais foram as principais diferenças entre trabalhar com arte em grandes cidades como Santos e São Paulo, e seguir com a profissão em Santa Catarina?

Nicole Leite: Em nenhum lugar tem sido fácil e é sempre uma luta diária, mas percebo algumas diferenças sim. Acho que o estado de São Paulo possui políticas públicas mais estruturadas voltadas para o setor cultural. Também é um estado MUITO multicultural, pois agrega grupos diversos, que partiram, ou foram forçados a deixar seus países ou outros estados do Brasil, para se estabelecerem em SP, tanto na capital como no litoral. É muito comum ver pessoas cujo os familiares não são de São Paulo. Eu por exemplo, tenho minha família toda nordestina por parte de mãe, e a família por parte de pai é paulistana e espanhola, pois minha vó deixou a Espanha para morar em Santos aos 16 anos.

Digo tudo isso pois na minha concepção, essa diversidade toda deixa a região mais multicultural em todos os aspectos, e até certa medida, a população respeita isso (claro que temos muitas ressalvas aqui, a cultura nordestina ou afro-brasileira não é tão respeitada como as europeias, mas enfim). Já em Santa Catarina, parece existir uma questão histórica em que prevalece a cultura europeia, principalmente as culturas alemã, italiana, etc, em detrimento dos outros povos que aqui também habitavam (população afrodescendentes, indígena, etc.). Eu sinto que a tolerância com a cultural alheia é menor. E isso pode respingar em muitas coisas, que vão desde a qualidade de vida das pessoas imigrantes, até as políticas públicas para o atendimento e dignidade dessas pessoas.

Joinville/SC e Santos/SP são cidades com área territorial e número de habitantes bem aproximados, mas os incentivos voltados para o setor cultural são diferentes. Em Joinville a gente precisa lutar MUITO contra o conservadorismo, a censura, a marginalização da cultura como um todo. Como eu já disse, em Santos não é fácil também, mas é diferente. São Paulo tem uma realidade que não tem como comparar a nenhuma cidade do Brasil e até mesmo a poucas cidades no mundo. É uma cidade riquíssima, com muita gente, muito mais oportunidade mas também muita competitividade. Tá todo mundo lutando por um espaço, por contatos, por formação, por uma parede na galeria, por uma vaga em uma Cia. Tem, de fato, muita oportunidade, mas o cenário da desigualdade lá é tão explicito no nosso cotidiano, e isso me afetou muito.

Vivi coisas maravilhosas lá, as mais marcantes foram os trabalhos que eu fiz como dançarina para a O2, uma das maiores produtoras audiovisual do país, e um outro trabalho chamado Protesys, com direção de Afonso Poyart e participação do Cauã Reymond. Mas pra viver com o mínimo de dignidade lá é preciso já ter muito dinheiro e eu não tinha recursos para além do que eu ganhava trabalhando, isso que trabalhei com muita coisa sem ser artisticamente também. Certo dia, demorei 4 horas para sair de um trabalho na zona sul de São Paulo para chegar na casa do meu tio na zona leste. Nesse dia percebi que, se eu quisesse ter tempo e qualidade de vida naquele momento da minha juventude, eu precisaria deixar de lado o sonho de morar na capital, ao menos até me estruturar para quem sabe, voltar futuramente e assim vivenciar as melhores partes daquela cidade incrível e desafiadora.

Em cidade menores como Joinville e Santos, em relação a São Paulo (capital) as oportunidades são menores, mas existe mais espaço para a inventividade e criação de novas proposições. Se a cidade tiver estrutura e políticas para incentivar esse crescimento, melhor ainda. Em Joinville a gente luta diariamente para conseguir incentivos e espaço, e acima de tudo respeito para com a nossa existência e nossas expressões .

Arte na Cuca: Foi também em Joinville que você iniciou o curso superior de bacharel em Artes Visuais e segue atuando profissionalmente, (artes visuais, dança e arte-educação). Alguns artistas encontram dificuldades para atuar em diferentes linguagens e perceber as artes em suas diversas possibilidades e conexões. Como as três atividades atravessam seus projetos pessoais e culturais?

Nicole Leite: Apesar da gente classificar nossas atuações em “caixinhas”, agrupando por suas características inerentes e especificidades (e até mesmo para melhor organizar as demandas de cada fazer), eu acredito que as coisas se misturam, se influenciam e se convergem até certo ponto. Claro que depende muito da pessoa que “encabeça” essas ocupações. No meu caso, eu gosto dessa transversalidade, da influência desses setores entre si, sinto que me potencializa. Por exemplo; sou da dança e quando iniciei minha produção no campo das artes visuais, fez muito sentido que a performance fosse uma linguagem que estivesse no meu radar, pois possuem semelhanças. Para mim é confortável e atraente, embora a performance seja uma coisa e dançar seja outra coisa.

O que quero dizer é que para mim faz sentido essa múltipla atuação, pois acho que existe uma potência nisso, e também é uma característica minha. Eu sempre fui bastante difusa, curiosa e com uma vontade absurda de experimentar e vivenciar muitas coisas. Agora, deixando o romantismo um pouco de lado, para ter uma gestão eficiente e organizada dessa quantidade de demanda eu tive que aprender muito, e errar muito também. E principalmente amadurecer, o que tem sido todos dias. As pessoas não lidam bem com a multiplicidade de demandas, somos ansiosos e nesse sistema precisamos trabalhar muito para sobreviver, temos pouco tempo (ou temos a sensação de que não temos tempo).
É preciso ter muita organização, e de fato ter uma relação afetiva com esses setores, acho que eles tem que nos empolgar minimamente para a gente seguir neles. Outro fator bem importante, para trazer mais os pés para o chão: algumas pessoas tem escolha, outras não.

No meu caso, eu preciso trabalhar, pagar aluguel, pagar faculdade, comprar comida, comprar o papel e a caneta que eu vou usar no meu desenho. Se envolver com mais setores da cultura foi também uma estratégia de sobrevivência, para sobreviver economicamente de arte, de cultura, do que mantem minha alma quente e por consequência, minha vida mais realizada. Sendo bem sincera, eu tenho sempre muito medo. Pois nesse país não estamos seguros vivendo de arte, ainda mais fora das capitais. Estamos a mercê de gestores que tratam a cultura com pouca ou nenhuma atenção, e se tratando de Joinville, simplesmente não existe um sistema da arte que estruture uma cena artística profissionalizada.

Temos uma única galeria comercial – com pouco acesso para artistas periféricos; temos uma única lei de incentivo municipal o SIMDEC (Sistema Municipal de Desenvolvimento Pela Cultura), sempre em risco, temos sempre que lidar com o conservadorismo, mesmo no próprio setor. Muitos desafios, SEMPRE. Felizmente, é compatível comigo essa postura dinâmica de ocupar muitos espaços. Graças a isso, conheço tanta gente especial, tanta gente profissional, mas que não recebe dinheiro para, e isso me dói o coração. Gente que fica sem referencia aqui, devido a todos esses problemas que comentei, e por isso se esquecem do gigantesco talento que possuem. Para minha sorte, estou com essas pessoas cotidianamente, as vezes sem nos vermos por um tempo, mas estamos sempre em contato.

A cena cultural alternativa da cidade é forte, é linda, e é poderosa. Eu acho que tudo isso tem transformado quem eu sou, e por consequência, a minha atuação nesses setores que você comentou, pois o que eu aprendo em um lugar parece sempre se complementar ao que eu faço em outros espaços.

Em exposição na AAPLAJ

Arte na Cuca: Você participa de muitos projetos coletivos, sempre atuando em várias pautas. Desde 2022 integra o Conselho Municipal de Políticas Culturais de Joinville pela setorial de Artes Visuais, como tem sido essa experiência? Acredita que os artistas devem se envolver com a política pública institucionalizada?

Nicole Leite: Desde quando entrei no CMPC (Conselho Municipal de Políticas Culturais) aprendi MUITO, muito mesmo. Antes eu era muito crua no que diz respeito a política institucional. Entendi muitas coisas nesse meio tempo. Sempre vai ser uma luta trazer dinheiro para o setor cultural, principalmente se a gestão pública tiver pouco entendimento sobre o nosso setor. Acredito que no governo de Jair Bolsonaro, nós artistas sofremos muito. Agora, felizmente, tivemos bons momentos com o retorno do Ministério da Cultura e da implementação de leis como a Paulo Gustavo e a Aldir Blanc.

Eu acho que no Brasil é importante que a gente se envolva com a política, mesmo que minimamente. Mas também não acho que a gente deva dizer no que as pessoas devem ou não se envolver, vai de cada um e cada um vê uma importância naquilo. Eu aconselho aos meus colegas e qualquer profissional da cultura, ou a qualquer cidadão mesmo sem vinculo profissional com o setor cultural (afinal cultura é cidadania!), que pesquise e entenda um pouco sobre os direitos culturais nesse país. É importante que a gente saiba a estrutura, o que é competência do executivo, do legislativo, do judiciário. Essas informações nos empoderam e faz com que a gente entenda melhor os caminhos para demandar o cumprimento desses direitos. Vejo a galera com um fazer cultural fortíssimo, que promove um desenvolvimento pela cultura de em sua comunidade, mas não sabe que existe fomento, leis de incentivo, editais que serve justamente para fortalecer esse fazer.

Não quero dizer que é culpa das pessoas não saber, muito da nossa falta de conhecimento vem do próprio sistema educacional do país, e todas as suas desigualdades. Eu nunca pisei em uma escola particular na vida, por causa disso consegui bolsa de estudos no primeiro ano de uma faculdade particular, mas se quando me formei no ensino médio eu soubesse para que servia o ENEM, e como as universidades públicas são importantes, acho que tentaria ter ingressado na universidade pública.

Tudo que estou aprendendo, estou aprendendo agora, vivendo. Vivo enquanto aprendo a viver. E quanto mais vivo de cultura mais eu entendo que o conhecimento e a articulação social coletiva, são uma das nossas melhores maneiras de contornar todas essas adversidades. Então eu aconselho sim que a gente se envolva mais com a política institucionalizada, embora seja natural que algumas pessoas fiquem na linha de frente, enquanto outras dão o suporte. Compartilhar informação pelas redes sociais, seguir e curtir o trabalho da galera que faz o babado acontecer, ler sobre o que tá acontecendo, ir nas reuniões (falando do CMPC), ou só compartilhar quando tem, enfim, qualquer coisa, ajuda muito o coletivo.

Arte na Cuca: Nesse teu processo de descoberta e aprendizado no que diz respeito política cultural do município de Joinville, acredita que o caminho seria menos árduo e mais assertivo, se houvesse uma formação política para conselheiros e conselheiras de cultura?

Nicole Leite: Eu acho o Sistema Municipal de Cultura (SMC) muito completo na teoria, mas ele não é operacionalizado em seu todo. Um dos elementos desse sistema é o Programa Municipal de Formação em cultura (Lei 6.705), o artigo VII fala sobre estimular e promover a formação e qualificação de pessoas em política e gestão culturais, incluindo a dos profissionais de ensino; o que que ainda não existe de forma sistematizada, e isso é um dos fatores que deixa a atuação dos conselheiros cheias de “furos”, principalmente a dos conselheiros iniciantes. Por exemplo: é super difícil para novos rostos ingressarem no CMPC (Conselho Municipal de Política Cultural) e participarem ativamente das discussões políticas, pois nesse contexto são utilizadas falas, termos e encaminhamentos que são desconhecidos por pessoas que não estão inseridas nessa institucionalização, e isso assusta, nos deixa à margem das discussões.

Durante a Conferência Municipal de Cultura de 2023

Atualmente não existe uma metodologia ou um conjunto de passos, quando uma nova gestão de conselheiros assume. Não existe a preparação para nos possibilitar condições de discutir temas como por exemplo: o Sistema Municipal de Cultura e suas instâncias, as funções de um conselheiro, ou até mesmo as questões técnicas para ajudar na construção dos editais de cultura, como por exemplo os editais do Simdec (Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura). Além das dificuldades de organização das setoriais e entre os conselheiros representantes da gestão e da sociedade civil, para que a gente saiba a quem recorrer quando necessário.

Enfim, o que acontece é que cada um se vira como pode e tudo fica muito desigual. A implementação do Programa Municipal de Formação em Cultura seria uma das saídas para amenizar essas desigualdades de acesso ao conhecimento técnico que é importante para ser conselheira. Nada mais justo e inteligente, que todas as pessoas tenham o mesmo entendimento das leis, decretos, e toda informação pertinente a esse meio, de forma pedagógica e acessível em termos de linguagem. A quem interessa um monte de conselheiros sem saber a quem recorrer? Sem ter os conhecimentos necessários para formalizar suas demandas? A quem interessa um conselho ineficiente? Eu penso que essa conjectura interessa muito para gestões que marginalizam a cultura por sua ignorância, ou ganância (ou ambos) e seu conservadorismo.

Durante audiência pública na Câmara de Vereadores de Joinville. Tema: Alterações na lei do Simdec. (Foto: Site da Câmara de Vereadores de Joinville).

Arte na Cuca: Para finalizar nossa conversa, queremos falar um pouco sobre a sua produção artística e poética nas artes visuais. O que você pesquisa e quais são suas principais linguagens nas artes?

Nicole Leite: Eu acho que esse monte de coisas influência meus interesses, o que torna tudo bem difícil de organizar! (Risos). Bem, como ponto de partida, me volto para dança, para o corpo, para o movimento, que são territórios familiares a mim. Com esses elementos em mente, exploro as linguagens das artes visuais, como a pintura, o desenho, a fotografia e a performance.

Basicamente, tenho experimentado muito no campo do desenho, da linha e do gesto, enquanto um movimento que produz visualidades. Existem objetos que me atraem também e trago eles para a pesquisa. Objetos como a cadeira vermelha de plástico, característica dos nossos botecos brasileiros, e que faz parte de um universo muito afetivo para mim. O carvão também é um elemento que me atrai desde 2019, utilizo ele nos desenhos, gosto de pensar sua materialidade e suas possíveis significações com base nas relações que podemos fazer. Recentemente comecei a pensar nele como “elemente” cênico em performances e foto-performances. A parte conceitual de tudo é um desafio, tanto quanto a materialidade desses tantos interesses, por vezes tão polifônicos.

Nos últimos meses, tenho investigado o rastro e o risco, com a indagação: o que fica no espaço depois que o corpo passa e depois que se mexe? Essas marcas (ou vestígios, ou provas de algo vivo que passou) além de compor a imagem, seja pelo desenho, pelos objetos, nas fotografias, vídeos, e nas “sobras” das performances, indicam também um corpo em estado de “mexeção”, (corpo em movimento) que passou, e que continua ocupando uma superfície, e assim mantem sua existência viva e disponível para ser investigada, disponível para ser encontrada. O que é deixado evoca presenças emocionais, através das associações e das lembranças que se acionam ao nosso corpo.

Acho linda a ideia de pensar o encontro entre pessoas, entre alguém e algo, seja algo vivo, seja um objeto, seja uma ideia. Sabe aqueles encontros que nos deixam nervosos, ansiosos? Aqueles que a gente sente toda essa emoção no corpo, através de sensações como arrepios, respiração alterada, fala e pernas bambas? Acho tudo isso muito interessante! Para mim, o desafio tem sido ver esses interesses nas propostas que executo. No entanto, acho chato e falho impor os conceitos já formatados para o que está nascendo poeticamente nas experimentações.
Essas materialidades falam por si também, e podem mudar o nosso rumo dentro de uma pesquisa. É preciso deixar essa conversa sempre de uma forma horizontal.

O principal instrumento do artista, na minha opinião, é a sensibilidade. Se ela não estiver ativa, nos ajudando, a gente fica muito perdido. É sempre uma conversa que se entende no silêncio, na pausa. Algo que tem sido difícil nesse nosso tempo atual. A gente não pausa. É “clichêzinho”, mas estou vendo que realmente, é na presença que a gente se organiza, se mune, apreende para si todas essas informações do mundo, para organizar em nós mesmos. Para a gente elaborar o que achamos disso tudo, de forma autônoma, de forma nossa, sem correr o risco de simplesmente andar por esse mundo sem entender o que entende dele.

Muito além dos games: como os jogos podem aprimorar o ensino e o sentido da história


Ao começar a jogar o game Assassin’s Creed Syndicate você logo se deparará com a seguinte frase: “Inspirado em eventos e personagens históricos, esse trabalho de ficção foi concebido, desenvolvido e produzido por uma equipe multicultural, de várias crenças, orientações sexuais e identidades de gênero”. 

Após, verá efeitos visuais que representam o tema histórico do game, algo posterior ao contexto da Revolução Industrial. Cenários com fábricas, a cinzenta Londres e trilhos de trem passam a ser o horizonte do ambiente jogável.  Personagens como Alexander Graham Bell, Charles Darwin, Dickens e Karl Marx cruzarão o seu caminho nessa história. Reflexões sobre o contexto histórico, preocupações sociais ou econômicas aparecerão entre missões para retomar os bairros de Londres e claro, muito parkour, mas também monólogos como esse a seguir: 

“Senhores! Este chá foi trazido até a mim da Índia por um navio, depois levado do porto até a fábrica, onde foi embalado e transportado por uma carruagem até a minha porta, desembalado na despensa e trazido até aqui em cima para mim […] Eles vão trabalhar em suas fábricas do mesmo modo que seus filhos também trabalharão”. 

Quais aspectos da história do século XIX poderiam ser analisados em interações desse tipo? Questões geopolíticas? Por quais razões o chá é trazido da Índia? Logística e princípios da globalização? Questões de classe, trabalho e renda e suas interconexões? Como entender as motivações dessas interações no jogo, ou melhor, como esses games são construídos? O que o jogo mostra, omite, destaca, como os mapas foram modificados ou cenários e suas razões podem levar o estudante a questionamentos e a um aprofundamento sobre determinada conjuntura histórica. 

Entretanto, devemos lembrar, Assassin’s é uma ficção inspirada em eventos ou personagens históricos, não parece ser de fato “história”.  Para muitos historiadores o estudo da história deve se ater aos fatos ou dados extraídos de forma literal de fontes históricas do mesmo modo em que os pesquisadores do século XIX o faziam. Porém, compreender a história deixou de ser análise de dados há algum tempo e passou a ser a construção de uma consciência histórica relacionada ao tempo presente. São as memórias coletivas do presente que ordenam o nosso passado. 

O historiador estadunidense Hayden White diria o seguinte sobre a relação entre ficção, narrativa e história:

“É possível produzir um discurso imaginário sobre acontecimentos reais que pode não ser menos “verdadeiro” por ser imaginário”.

Narrativas e representações do passado mesmo que ficcionais podem formar o nosso imaginário sobre o passado, para o bem ou para o mal. Por exemplo, games que retratam conflitos militares podem moldar identidades nacionais através de mobilizações de sentimentos e empatia com personagens e tramas de determinadas nacionalidades. Compreender como o imaginário ou a ficção é construída também é compreender a realidade histórica do seu tempo. Por sua vez, ao caminhar por esse processo é possível tanto para o professor de história quanto para o estudante elaborar mecanismos de um estudo crítico sobre temas históricos.  

Beyond Gaming: How Assassin’s Creed Expanded for Learning –
Games for Change 2018

As simulações digitais já têm um tempo, também passaram a se preocupar com um caráter pedagógico, educacional e com um objetivo de construção de uma narrativa histórica através de pesquisas acadêmicas. A Ubisoft aproveitou o sucesso da série Assassin´s Creed e criou expansões com caráter educacional sobre a história da Grécia, do Egito e do período Viking. A mesma empresa em parceria com a TV francesa criou um documentário interativo chamado Lady Sapiens: Breaking Paleolithic Stereotypes, que retrata o período paleolítico através de novos vestígios arqueológicos que mudam a visão sobre o papel da mulher na pré-história. Com base no jogo Farcry – Primal e por meio da realidade virtual, o expectador pode tomar decisões e aprender ao interagir com o documentário. 

Lady Sapiens: Breaking Paleolithic Stereotypes

Quais vantagens essa mídia poderia trazer para aprendermos sobre história? Shaneila Saeed, diretora da escola Digital Schoolhouse em Londres, usaria duas expressões para definir a especificidade da potencialidade educacional nos games: empatia e envolvimento. Obviamente, a conexão desses fatores através da interação. Ou seja, é a partir da participação do estudante na história através de um meio prático e o sentimento de empatia que a cognição histórica e a imaginação sobre um contexto ou conjuntura podem ser catalisados. Muito mais do que dados, datas ou nomes a serem memorizados, mas sim a compreensão de uma conjuntura histórica através do envolvimento com os personagens e o enredo das narrativas históricas, mesmo quando ficcionais. 

Ancestors: The Humankind Odyssey – Launch
Gameplay Trailer

Em Ancestors: the Humankind Odyssey, produzido pela Panache Digital Games e jogável na maioria das plataformas, você tomará o controle de um avatar, um símio ancestral do homo sapiens há cerca de 10 milhões de anos atrás, em algum lugar na África. Com base em pesquisas recentes sobre a evolução de nossa espécie o jogador poderá criar a sua linhagem e enfrentar os desafios da sobrevivência.  A imersão do jogador ocorre através de experiências que incluem descobertas de alimentos, de ferramentas, lógica, evolução dos sentidos, metabolismo, comunicação ou trabalho em equipe. Detalhe para as possibilidades de caminhos diferentes de evolução, trazendo visões críticas para a compreensão de aspectos biológicos e sociais da humanidade. 

“A hierarquia dos sentidos com a dominação e a hipertrofia da vista é um resultado do processo de civilização”.
Christoph Wulff

Tal qual a nossa evolução como espécie, os nossos sentidos de captação do que é real, também foram modificando ao longo do tempo. Estamos em um novo processo de modificação de sentidos, agora em direção à imersão e a uma convergência de mídias que expandem o ato de experienciar o mundo, especialmente as simulações digitais. No campo do ensino da história, imaginar, experenciar e sentir outros tempos podem ser caminhos para uma nova forma de pensar a história, de viver a história, de aprender e ensinar a história. 

“Já não me sinto só”

Já conhecia e gostava muito do trabalho da atriz (e escritora) Maria Flor, no cinema, na teledramaturgia, nas séries, então quando seu romance “Já não me sinto só” saltou aos meus olhos em uma estante de livraria, já o coloquei na minha lista dos desejos e quando finalmente o adquiri, comecei a ler com altas expectativas. E as expectativas foram atendidas. “Já não me sinto só” é o romance de estreia de Maria Flor, lançado em 2021 pela Editora Planeta.

Conta com 192 páginas para contar a história de Maria, uma atriz que após o término de um longo relacionamento, é convidada para participar das filmagens de um longa metragem no Jalapão, Tocantins. Maria embarca decidida a dedicar-se exclusivamente ao trabalho, mas a viagem acaba se tornando uma jornada de autoconhecimento.

O livro mescla cenas leves e divertidas com passagens profundamente dolorosas e, para mim sem surpresa, uma pitada de romance.  É uma delícia!

Por que ler?

Porque se trata do romance de estreia de uma, já consagrada atriz brasileira. Porque a linguagem é fluida e a leitura nos faz esquecer o tempo. Porque, embora seja ficção, trata-se de uma atriz, narrando a história de uma atriz. Porque o livro me fez sentir verdadeiramente de férias. Porque a obra é dividida em capítulos curtos (como eu gosto) e quando a gente vê, já leu o livro quase todo

Porque o leitor fica verdadeiramente, na torcida por Maria (com ou sem um par). Desejo que a história de Maria, te surpreenda e te cative como cativou a mim e que você também fique, como eu, aguardando pelo próximo livro da atriz, diretora, roteirista, escritora e, agora mãe, Maria Flor.

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“Tchau”

Meu primeiro contato com a obra de Lygia Bojunga foi aos 12 anos e, confesso que o primeiro contato não me agradou.

Claro, eu já tinha ouvido falar da escritora e também de suas obras “Angélica”, “Corda Bamba”, “A Casa da Madrinha”, “A Bolsa Amarela”, mas lhe fui apresentada ao seu texto com “O Sofá Estampado” e, talvez por ter se tratado de uma leitura obrigatória, talvez por imaturidade leitora, achei a obra chatíssima. Eu não entendia nada: qual a relação daquele tatu com aquela gata? O que representava aquele sofá? Aos 12 anos, quando a escritora ainda assinava Lygia Bojunga Nunes, nada daquilo fazia sentido pra mim e, confesso também que, mesmo depois de adulta, não tive a menor curiosidade de voltar à obra; Eis um grande problema da forma como a leitura era trabalhada na escola: a leitura obrigatória para fazer um fichamento…a mesma obra para todos os alunos/leitores…enfim, mas essa discussão fica para um outro momento.

Mais tarde um pouco, assisti a uma adaptação para teatro de “Corda Bamba”, da qual tenho pouca lembrança e outra de “Angélica” da qual recordo ainda trechos quase completos. Ainda assim, isso não foi suficiente para levar-me de volta à obra de Lygia Bojunga. Eu já era adulta. Já contava histórias, quando adquiri quase que por birra “Tchau”. Meu exemplar é da Editora Agir e data do ano de 1994. Nossa…”Tchau” foi uma revolução em mim! O livro de 78 páginas é dividido em quatro contos: “Tchau”, que dá título à obra, “O Bife e a Pipoca”, “A Troca e a Tarefa” e “Lá no Mar”

Li e reli diversas vezes. Já mais de uma vez, li às crianças de quinto ano, atualmente na faixa de 10, 11 anos e ele nunca passa “em brancas nuvens”. Sempre gera algum desconforto, alguma revelação e não raro, alguma criança acaba por adquirir o livro. A linguagem dos contos é bastante acessível e a leitura fluida, mas é importante que se esclareça que, embora seja literatura infanto-juvenil, publicada originalmente em 1984, todos os contos possuem gatilhos que, na minha modesta opinião, exigem atenção de um adulto. 

Por exemplo, uma vez li o conto “Tchau” para uma turma de quinto ano. O conto narra a história de uma mulher que se apaixona por um homem e é convidada para morar com ele na Grécia, deixando com o ex marido seus dois filhos, um bebê e uma menina já maiorzinha. Ao terminar a leitura, um dos meninos estava com os olhos marejados. Ele achou a história bonita, mas muito triste. Não se conformava com a ausência de um “final feliz”  (olha o spoiler aí, minha gente!). Nesse momento, tive que intervir e explicar que na literatura, assim como na vida, nem sempre há um “final feliz” e tudo bem. Ele não se conformou com a explicação e disse que iria “procurar na Internet se não havia um outro final pra´quela historia”. Não sei se ele o fez.

Por que ler?

Porque se trata de literatura brasileira premiada. Porque é de autoria de uma mulher que é um ícone na literatura brasileira. Porque, apesar de ter sido escrita nos anos 1980, continua atual. Porque nem sempre a vida real nos presenteia com o tal “final feliz” e é importante reconhecer isso na boa literatura, também. Porque os contos são emocionantes. Porque todo mundo merece dar-se a chance de ter um desses encontros arrebatadores da vida real com a literatura. Indico a obra para leitores de sensíveis corações e desejo que a obra encontre em você o mesmo eco que encontrou em mim.

Boa leitura!

“Não é o meu trabalho que é feminista, eu que sou”. Uma conversa com a artista Fernanda Oliveira, do perfil @ahuterina

Descobri a Fernanda Oliveira, durante essas tardes de domingo em que a gente não quer fazer nada, além de zapear pela televisão ou as redes sociais. Na verdade, não descobri a artista Fernanda (ela eu conheci bem mais tarde), mas sim o perfil no Instagram da @ahuterina. Parei, prestei atenção e fiquei maravilhada com a sutileza das colagens e bordados de seus trabalhos.

Além das imagens, uma das primeiras coisas que me chamou a atenção, foi o nome escolhido: ahuterina?? O que seria isso? (pobre de mim, que nem relacionei a palavra com meu próprio útero). Mas mesmo sem fazer essa conexão tão óbvia, eu entendi cada palavra, cada colagem e cada imagem produzidas e postadas naquele perfil. Não pensei duas vezes, antes de fazer contato com a artista por trás daquela arte, questionadora e defensora dos direitos e liberdades de escolha de todas as mulheres. O encontro aconteceu em Setembro de 2021, mas por motivo de força maior a nossa entrevista só nasceu agora, em 2022.

Marcamos um café no centro da cidade de Joinville/SC, ainda com muito receio dos encontros presenciais, mas já vacinadas. Minha primeira impressão foi a melhor possível: além de muito talentosa, Fernanda é um doce de pessoa. Cheia de ideias e referências, logo tínhamos uma mesa repleta de telas, colagens, gravuras e bordados – um trabalho feito por ela, mas que transbordava o grito de outras mulheres. Eu estava lá, entusiasmada e ouvindo suas histórias, as histórias da mulher, mãe, doula e artista. Entendi porque o perfil tinha me chamado tanto a atenção e de onde vinha toda aquela força e verdade.

Fernanda Oliveira


Decidi ser Doula porque queria ajudar as mulheres a passarem com mais respeito pelo parto e ajudar a desmistificar o que envolve a gestação e é reforçado pela medicina”.


Fernanda é doula por opção e profissão, e artista para exercitar a liberdade. Produz trabalhos visuais que transitam pela técnica da colagem e bordado, na intenção de promover reflexões acerca dos direitos e do papel da mulher na sociedade. Na entrevista que concedeu ao Arte na Cuca, a artista fala sobre suas pesquisas, o projeto @ahuterina e de onde vem a inspiração para a produção visual que já recebeu o reconhecimento do Quebrando o Tabu (marca de mídia multiplataforma especializada em Direitos Humanos).

Celiane: Nossos leitores (assim como eu), desejam saber um pouco mais sobre quem é a Fernanda Oliveira, nos fale a respeito da tua trajetória profissional e pessoal.

Fernanda: Bom, meu nome é Fernanda Oliveira, tenho 35 anos e como ocupação profissional sou Doula, mas é na arte onde encontro formas de expressar o que me atravessa e me conectar com meus sentimentos. Decidi ser Doula porque queria ajudar as mulheres a passarem com mais respeito pelo parto e ajudar a desmistificar o que envolve a gestação e é reforçado pela medicina. Eu não sou muito boa pra falar em público, por exemplo. Mas na arte encontro essa facilidade de comunicação.


Celiane: Você pode nos contar um pouco sobre a tua trajetória como artista visual? Como foi o início dos trabalhos em colagem e bordado?

Fernanda: É algo que sempre esteve presente, como se fizesse parte de mim. Naturalmente fui levada a trabalhar em ateliês, a ministrar aulas e oficinas, e a expor meu trabalho para que as pessoas pudessem conhecer. Fui passando por vários caminhos e experimentos até aqui. 

Celiane: Como é seu processo de criação? De que forma organiza, reorganiza e decide sobre a produção de um novo trabalho?

Fernanda: As vezes é intuitivo, as vezes são gritos que precisam sair. Depois disso seleciono se no papel ou tecido, ou os dois juntos, se necessita de pesquisa ou não. Visualizo na minha cabeça e só desaparece dos pensamentos quando consigo trabalhar naquilo e na maioria das vezes, faço um planejamento prévio em papel antes de iniciar.


Celiane: Seus trabalhos provocam muitos questionamentos e chamam a atenção para questões contemporâneas dos pensamentos feminino. Também me chamou a atenção o fato das tuas colagens dar visibilidade a corpos de mulheres brancas e poucos trabalhos trazem a representatividade da mulher negra, pode nos falar algo a respeito?

Fernanda: Uso sempre revistas antigas, anos 70, 80 e de moda, não existia mesmo essa representação. Ganhei uma coleção de revistas completa da Agulha de Ouro, devem ter umas 90 revistas dos anos 80, não há mulheres negras, nem na capa nem dentro, é muito perceptível … Há 2 recortes, um dos anos 70 e outro dos anos 80 no meu feed. E bordado de peitinhos, onde busquei representar todas as cores. Mas também não acho que meu trabalho deva abordar todos os temas, nem que eu tenha esse compromisso de contemplar a todas … levo pra vida o ” pessoal é político” e são nas minhas ações que sou feminista, a minha arte é só uma parte disso, entende? não é o meu trabalho que é feminista, eu que sou.
É no pessoal que eu compro, exalto, indico, mulheres negras, deficientes, lésbicas, etc. No pessoal é onde eu participo de políticas e ações públicas que é de onde surgirão mudanças efetivas, no offline, principalmente sendo antirracista. Se eu fosse uma grande marca, aí sim eu te diria que eu teria o dever de contemplar e representar todas as mulheres. Como mulher artista, eu expresso apenas um pedaço do meu entorno com os materiais ao meu alcance.

Celiane: Você acredita que a arte pode ser um caminho para chamar a atenção da sociedade, no que diz respeito aos direitos humanos e direitos das mulheres?

Fernanda: Acredito muito. A partir do momento em que levantamos o questionamento já estamos no caminho para mudanças. Falar de representatividade, voz e denúncia, muitas vezes através do bordado, considerado culturalmente um passatempo doméstico, já é uma ampliação do olhar.

Celiane: Nos fale de algumas das tuas referências de pesquisa… Quais sãos as mulheres que te inspiram, e os perfis nas redes sociais que você segue para se atualizar?

Fernanda: São taaantas as mulheres que me inspiram todos os dias, que acho extremamente difícil escolher apenas uma…passo por Elza, Frida, Clarice, Virginia, Dilma, mulheres da música, do cinema e as mulheres ao meu entorno, todas pela sua força e ideias e eu sou uma mistura de todas elas. Alguns dos perfis que eu sigo são: @vulvanegra, Brisa, da @vulvamtilliandum, @portalgeledes , fundado por Sueli Carneiro, @coletivoperseguidas .



“Em Casa para o Natal”

“Em Casa para o Natal”, de Cally Taylor é um chick lit, daqueles bem leves, divertidos, de leitura fluida, ótimos para o período de fim de ano quando, a maioria das pessoas deseja colocar o pé no freio na loucura do dia a dia. Chik lit é uma subdivisão dos romances. Sim, na maioria das vezes há nele o romance romântico, mas seu foco principal é na trajetória da protagonista, geralmente uma mulher na casa dos 30 anos. Costumam ser romances divertidos, daqueles que agente logo pensa que poderiam ser comedias românticas, dessas despretensiosas que a gente assiste na “Sessão da Tarde”.

Lançado pela Bertrand Brasil em 2013, “Em Casa para o Natal” nos narra a história de Beth Prince, uma mulher que parece ter a vida ideal: faz parte daquele privilegiado grupo de pessoas que trabalha com o que gosta, no caso dela em um charmoso cinema independente e tem o namorado dos sonhos. Ela acredita estar nas nuvens, embora, ache que Aiden tem algum bloqueio emocional que o impede de dizer as tão sonhadas três palavras: “EU AMO VOCÊ”

Então decide ela mesma, dar um jeito na situação e se arrepende amargamente. A despeito do desmoronamento do seu relacionamento de conto de fadas, a vida resolve lhe pregar uma nova peça: o cinema em que trabalha há anos, foi comprado por uma grande rede de cinemas que fará um extenso processo seletivo para, eventualmente contratar os funcionários do antigo cinema independente que ela tanto ama. Beth, a princípio tem dúvidas se participará ou não desse processo, sobretudo depois de conhecer Matt “um homem diabolicamente encantador”…e que representa a cadeia multiplex que pretende comprar o simpático cinema.
E isso tudo ocorre em Dezembro, quando ela precisa decidir estar ou não “Em Casa para o Natal”


Por que ler? Porque a temática é leve e de fácil leitura. Porque a capa é linda, bem ao estilo das capas da Bertrand Brasil para seus títulos natalinos.
Porque a história é divertidíssima e promete bons momentos de bom humor.
Se você procura algo leve, mas não bobo para se preparar para a época de festas “Em Casa para o Natal”, é certamente uma boa pedida, indicada para jovens e experientes leitores.

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“O Clube do Biscoito”

Chegou Dezembro e com ele o cheirinho de Natal!!!!
Falando em cheirinho, é metaforicamente possível sentir o deliciosos cheirinho de biscoitos natalinos entre as páginas de “O Clube do Biscoito”, de Ann Pearlman. Conheci esse livro no ano passado e não descansei enquanto não consegui comprar meu exemplar. Vale lembrar que, se você mora em Joinville, consegue encontrar o livro para empréstimo no acervo da Biblioteca Pública Municipal Prefeito Rolf Colin.

O livro, lançado no Brasil em 2011 pela Bertran Brasil, conta a história de 13 amigas que se reúnem todos os anos, na primeira segunda-feira de Dezembro. É uma tradição: cada uma deve levar um pacotinho de biscoito para cada uma das doze amigas e um a ser doado para uma instituição escolhida pelo grupo todos os anos; Junto do pacotinho de biscoitos, deve haver a receita do mesmo. Mas, neste ano, a reunião pode ficar comprometida por vários fatos distintos que podem abalar os alicerces dessa amizade construída com o tempo e “alinhavada” todo final de ano pelos doces biscoitos natalinos.

Talvez, até o final da obra seja possível compreender mais a fundo cada um desses acontecimentos. Em “O Clube do Biscoito”, encontramos uma receita de biscoito no início de cada capítulo e cada capítulo conta a história de uma das amigas e, de certa forma, sua relação com as demais.

Aqui você encontrará os dramas, as aventuras, os amores e os desejos de cada uma dessas mulheres. A leitura é indicada para leitores com mais de 16 anos. Não que haja alguma questão inapropriada, mas as temáticas em si e a linguagem são indicadas para leitores mais experientes.

Por que ler?

Porque a capa é um primor. De comer com os olhos. Porque encontramos nesse livro, treze histórias que são, ao mesmo tempo, individuais e coletivas, visto que direta ou indiretamente atingem também as demais Porque trata-se de uma leitura gostosa com a temática natalina, o que é um prato cheio para quem gosta dessa época do ano

Vale lembrar que é comum que a Bertrand Brasil lance no final do ano, um romance com temática natalina, embora para 2021, ainda não tenha anunciado nenhuma novidade…seguirei atenta. Ah, a diagramação desse livro é diferenciada em cada capítulo: começando pela receita sempre com uma fonte diferente..

Desejo que Marnie e suas amigas te ajudem a entrar “no clima natalino”, o que pode estar um tanto difícil nesses tempos sombrios, e que ao final da leitura, você também esteja com o coração quentinho e a vontade de preparar todas as receitas saindo das páginas do livro e invadindo sua cozinha…

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Super-heróis, imaginário ou realidade? Como a ficção em HQs transforma e representa a diversidade do real

Os imaginários contados através do cinema, dos games, das HQs, das peças de teatros, entre outras expressões artísticas, permitem nos transportar no tempo, experimentar emoções que fazem com que nossa existência expanda as meras experiências cotidianas. Em alguns momentos visto como escapismo, alienação e mero entretenimento, as produções artísticas podem também produzir identificação, representação e especialmente a empatia. Talvez essa última característica seja o que mais incomode alguns setores da sociedade. 

* Se estas criações são apenas ficções, por quais motivos geram um impacto na realidade? Ou melhor, qual seria a razão que leva uma ficção de um super-herói como Superman a boicotes, protestos, perseguição de artistas e outros absurdos incontáveis dependendo de qual história busca contar?

Nós historiadores temos a prática de vermos e identificarmos aspectos da realidade mesmo em produções de ficção ou entretenimento. É possível perceber a relação entre um tempo histórico com a sua produção cultural, seu impacto na sociedade e, por sua vez, a influência desta sociedade na produção de cultura. As primeiras HQs no formato em que conhecemos surgiram ao redor da virada do século XIX, como Yellow Kid de Richard Outcault em 1895, mas os quadrinhos mais conhecidos apareceram em 1929 com Tarzan, Flash Gordon em 1934 de Alex Raymond, The Spirit em 1940 e Batman lançado em maio de 1939 pela National Publications, atualmente DC Comics. 

Essas histórias sofriam influência direta do seu tempo, por exemplo, em Batman podemos observar uma Gotham City decadente, tomada pelo crime, extrema desigualdade e desesperança, o que podemos perceber como fruto da década de 1930, pós crise econômica de 1929 e seus reflexos na cidade de Nova York. Outros exemplos declaram o seu tempo de publicação, como a edição de julho de 1942 quando Superman surge segurando o imperador japonês Hirohito e Hitler na capa da revista e ao longo da HQ defende valores americanos, critica visões racistas ou mesmo defende a democracia em contraposição ao autoritarismo dos países do eixo na Segunda Guerra Mundial. Além de percebermos também essas visões em Capitão América na edição de março de 1941, é possível ao longo do século XX captar outras expressões históricas nas HQs.

É em 1963, após o discurso de Martin Luther King em Washington, no auge da luta dos direitos civis, liberdade sexual ou contra a guerra no Vietnã, que é publicada a primeira edição de X-MEN. Nessa história a metáfora do direito a igualdade entre as pessoas ficou explícita na trama, afinal os mutantes lutavam por seus direitos e com o tempo passaram a ter personagens e lideranças como o Professor Xavier e Magneto, uma clara referência a Martin Luther King e Malcolm X. Poucos anos depois Stan Lee e Jack Kirby incluiriam o herói T’CHalla, conhecido como Pantera Negra numa edição do Quarteto Fantástico o que representaria a população negra e suas heranças africanas. Esse grupo de heróis claramente representam e representavam a diversidade de minorias, suas lutas por igualdade de direitos e abertamente em suas narrativas fazem críticas a visões conservadoras e preconceituosas. É somente em 1979 que John Byrne cria o personagem Estrela Polar, o primeiro herói gay da Marvel, que de forma paralela a luta da comunidade LGBTQIA+ nos EUA foi ganhando força em sua representatividade também nos quadrinhos.

A cultura induz, mas muitas vezes é induzida a refletir o seu entorno através de histórias que cative, gere identificação com as transformações do seu tempo e principalmente envolva o consumidor daquela história através da empatia. Não por acaso temos grupos conservadores que tentam censurar histórias como em “Vingadores – A Cruzada das Crianças” na bienal de São Paulo em 2019 ou mesmo recentemente devido a bissexualidade Joe Kent em Superman: Son of Kal – El. 

As histórias narradas através de super-heróis são histórias de lutas, lutas por direitos, contra o preconceito, pela justiça ou por um mundo melhor. Para isto fazer sentido é preciso que essas lutas façam parte das reinvindicações reais da sociedade e tragam empatia, aproximação e identificação por aqueles que sofrem a injustiça do seu tempo e talvez por esse motivo é que as resistências a essas transformações sejam tão fortes.

Estrela Polar, casa com Kyle Jinadu nas páginas de “Astonishing X-Men” (2013)

“Tudo é Rio”

Sabe aquele livro que alguém fala: “Nossa, você TEM que ler esse livro!”? Então, foi assim que “Tudo é Rio” da mineira Carla Madeira veio parar na minha estante. Lançado em 2014 pela Editora Record Ltda, “Tudo é Rio” conta a envolvente, impactante e surpreendente história de um triângulo amoroso: o casal apaixonado Dalva e Venâncio e Lucy, a prostituta mais despudorada da cidade que vai se “intrometer” na vida do casal. Nesse ponto, a narrativa poderia virar um clichê, mas em momento algum a trama tende ao “lugar-comum”.

Dalva e Venâncio formam aquele casal “perfeito” que se ama, é fiel e deseja passar o resto da vida juntos, porém Lucy, não se conforma com o fato de Venâncio não a desejar e, em um determinado momento, um fato une inapelavelmente a vida dos três. A obra de estreia de Carla Madeira, é daquele tipo de narrativa que nos tira o fôlego e nos faz querer acompanhar a história até o fim, sem interrupções. “Tudo é Rio”, conta com 204 páginas e o fluxo da narrativa nos faz entender o título: a linguagem torna a história rápida como a correnteza de um rio, a trama é muito bem urdida e a velocidade com que, de repente, tudo acontece é realmente impactante.

Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: “(…) Carla dá até raiva na gente. Como assim, um livro de estreia tão potente, tão perfeito, tão pronto? Mas, diante da excelência não adianta esbravejar, manda a humildade que façamos a nossa parte: reverenciar e divulgar.”

Por que ler?

Porque é o livro de estreia de uma escritora que, ao que indica, veio pra ficar. Porque a obra é dividida em capítulos curtos, o que torna a leitura fluida.

Porque a linguagem é acessível sem ser banal. Porque a autora trabalha as cenas eróticas, narrando o explícito sem ser vulgar. E, por fim, porque você merece se surpreender com o desfecho da obra. “Tudo é Rio” foi uma grata surpresa que eu recomendo para corajosos leitores.

Em tempo, embora não haja indicação da editora, eu indicaria a obra para o público adulto.

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No Dia Internacional da Mulher a atriz Samira Sinara fala sobre empoderamento feminino e transformação social por meio do teatro-educação

Foto: Acervo PRJ.
Entrevista Por Celiane Neitsch

Neste 8 de março atípico, onde beijos e abraços são quase proibidos em virtude da pandemia que nos acompanha há quase um ano, num momento em que o distanciamento e o isolamento social são necessários para tentar garantir nossa segurança,  pensamos nessas mulheres. Mulheres que não podem abraçar ou serem abraçadas, beijar ou serem beijadas e muito menos escolher entre isolar-se ou não. Mulheres que não aparecem nas homenagens dos comerciais de televisão ou nas capas das revistas e que não são lembradas por seus grandes feitos na história. Mulheres que mesmo estando vivas, deixam de existir para a sociedade e muitas delas são esquecidas neste dia de comemoração e reflexão a cerca dos nossos direitos.

Para falar sobre a experiência de trabalhar e conhecer um pouco mais de perto o drama dessas mulheres e sobre o quanto é necessário investir em cultura e arte como agentes de transformação social, o Arte na Cuca entrevistou a atriz, produtora cultural e educadora Samira Sinara Souza.
Samira é integrante da VAI! Coletivo, e atriz do espetáculo solo “Celas e Elas”, projeto realizado em conjunto com a atriz e diretora de teatro Daiane Dordete, que desde 2019 leva oficinas de teatro para dentro da ala feminina do Presídio Regional de Joinville.

A atriz Samira S. Souza durante o Solo performático ©elas com Daiane Dordete e VAI! Coletivo. Foto: Fabricio Porto.

Arte na Cuca: Quando e como inicia sua trajetória com o teatro?

Samira: Desde a infância até a adolescência tive a oportunidade de ter contato com a arte. Minhas irmãs mais velhas fazendo ballet, piano, cursos, avó materna artista plástica e paterna bordadeira.

Minha tia e mãe faziam parte do grupo de dança moderna do teatro Carlos Gomes em Blumenau e depois em Curitiba, foram contatos vivenciando e prestigiando teatro, exposições, cinema e muito livro em casa. Quando vim morar em Joinville, aos 17 anos, resolvi fazer faculdade de Artes na Universidade  da Região de Joinville – Univille. Foi lá que através da disciplina de Improvisação Teatral, conheci o professor Nando Moraes, que junto com a professora Ângela Finardi, assumiram a Cia de Repertório da Univille, projeto de Extensão da instituição e ali estudei teoria e prática teatral durante sete anos.

Foram quatro peças como atriz de teatro e três peças trabalhando na técnica de som, luz e mídias. Quando sai da Univille queria estudar mais teatro-educação, para dar aula de teatro nas escolas, comunidade, ou seja, compartilhar o conhecimento entre as duas linguagens da graduação – cênica e artes visuais. Como já tinha uma pequena trajetória, fui buscar mais uma especialização em Curitiba (Unespar) para entrelaçar cada vez mais a teoria e a prática do universo das artes nas salas de aulas.

Arte na Cuca: Em sua opinião, quais são as principais dificuldades para fazer teatro e trabalhar com arte na cidade de Joinville/SC?

Samira: Acredito que as dificuldades de viver de arte na cidade de Joinville são apresentadas em três pilares: visão, fomento e financiamento. A visão do que vem a ser a arte, e o entendimento sobre a importância da cultura na vida das pessoas ainda é raso nesta cidade. Arte é considerada como algo supérfluo e piorou nos últimos anos. De dois anos pra cá, acompanho muitos artistas saindo da cidade, aqui, cultura parece ser algo a parte da vida, porém churrasco no fim de semana sem música ninguém faz, né? Cultura e arte, quando é para interesse próprio é importante, mas investir em longo prazo dá prejuízo, e esse pensar ainda é o de muitos empresários da cidade.

Joinville é a maior cidade do estado e com maior arrecadação de PIB Nacional, mas não possui: uma Companhia de Teatro Municipal ou de Dança (profissionais que trabalhariam representando a cidade no mundo). Vários espaços públicos destinados a cultura durante anos não foram restaurados (centro da cidade, Cidadela Cultural Antarctica, entre outros). Ainda não temos instituição de ensino superior nas Artes Cênicas (Dança, Teatro e Circo) e na Música, não tivemos durante anos a multiplicação de pontos de cultura nos bairros. Ou seja, se não há fomento e pouco financiamento na cultura, qual será o reflexo do pensamento da cidade? Surpreendo-me ainda em ver moradores da cidade nas redes sociais, questionando leis de incentivos à cultura na própria cidade. É triste não ter visão, é como se você estivesse morto.

Integrantes da VAI! Coletivo de Pesquisa Cênica. No encontro Colaborações SCenicas. (2021).

Arte na Cuca: Como surgiu a VAI! Coletivo, e quantos integrantes fazem parte dele atualmente?

Samira: A VAI! Coletivo surgiu em 2009, e nasce da visão em comum de alguns artistas de teatro. Os integrantes naquele momento-  Raphael Vianna (fundador e atualmente mora no RJ), Alex Maciel (Rústico Teatral), eu e Felipe Muciollo,  naquele momento buscávamos pesquisar e nos aprofundar em produções de peças autorais. Queríamos unir cada vez mais as artes visuais com as artes cênicas nas montagens e trazer a tecnologia ou seja refletir sobreo papel da mídia nas encenações teatrais.

 Por incrível que pareça, esta tornou-se a identidade do coletivo. Hoje formado por Raphael, eu, Marlon Zé e Jackson Silva. Sempre mantivemos a mente aberta para os projetos, ou seja, nem sempre todos do coletivo estão inseridos em todos os projetos realizados da VAI!. 

Desse modo, sempre estamos trabalhando com parceiros profissionais das artes cênicas,  que visam nossos projetos em comum. A exemplo, a montagem do solo performático teatral do Celas (2010) e desmontagem do Celas e Elas (2019), a convidada do coletivo para fazer parte destes projetos é a Daiane Dordete (diretora e dramaturga da peça, que atualmente mora em Florianópolis).

As atrizes Samira Souza e Daiane Dordete durante oficina de teatro no PRJ. Foto: Jéssica Michels

Arte na Cuca: Você e a atriz e professora Daiane Dordete, iniciaram em 2010 a pesquisa e montagem da peça “Celas”, construída a partir da narrativa de mulheres em situação de cárcere, pesquisa que tem seu desdobramento no espetáculo “Celas e Elas”. Como foi e tem sido para você a experiência de realizar estes projetos?

Samira: No ano de 2010, houve o desejo de realizar um solo teatral, acredito que este seja o desejo de muitos atores e atrizes. Naquele momento estávamos em busca de uma montagem também com dramaturgia autoral e a Daiane Dordete foi convidada para dirigir esse solo.

A pesquisa para esta montagem abordou a performance na cena e o universo feminista, então a historiadora Camila Diane cedeu sua pesquisa sobre as narrativas e depoimentos das mulheres egressas e regressas do Presídio Regional de Joinville, para que pudéssemos iniciar esta jornada.

No projeto contemplado pelo SIMDEC/ Edital do Mecenato 2010, “CELAS” – a montagem, não visava o universo carcerário porque não tivemos contato e experiência dentro das grades, o foco foi abordar as influências do patriarcado e da meritocracia na rotina da vida da mulher, como o preconceito, a violência contra a mulher e as prisões psicológicas vivenciadas pelas mulheres no século XXI.

O nosso contato com o Presídio Regional de Joinville foi com a apresentação da peça “CELAS”, foi uma contrapartida social do projeto, realizada no Dia Internacional da Mulher, em 08 de março de 2012. Neste dia, após as apresentações e o bate papo com as mulheres reeducandas, decidimos que voltaríamos para dar um curso de teatro a elas. Para mim, enquanto atriz, a peça criou novas camadas de impressões, imagens e sensações alterando inclusive, o ritmo da peça.

Voltamos no ano de 2019, com um novo projeto aprovado pelo SIMDEC/ 2016, na categoria de formação em cultura, que tinha como objetivo o curso de teatro no PRJ para mulheres em privação de liberdade. As aulas foram ministradas para a Ala Feminina A e B, e ao todo 34 mulheres foram contempladas com esta experiência que durou seis meses. Dentro deste projeto, remontaríamos o “CELAS” e apresentaríamos para elas com o bate papo, seria a nossa contrapartida social. Porém, percebemos que no decorrer das aulas, vivenciando uma rotina semanal com elas, o “CELAS” de 2010 já não era mais com aquele formato, então partimos com a ideia de uma desmontagem teatral do “CELAS” e inserir a nossa experiência no cárcere, presentando um novo título e espetáculo, o “CELAS E ELAS” de 2019.

Este desdobramento trouxe várias mudanças, uma delas foi a presença da fotógrafa Jéssica Michels, que nos acompanhou no projeto participando de três encontros para registros fotográficos, resultando numa exposição intitulada “Para além das celas”. Foi um momento de muita felicidade poder ver a alegria das mulheres reeducandas e como elas puderem se perceber nas fotografias, o quanto a arte mudou o olhar, o sentir da vida, e estas palavras e desenhos estão presentes nas cartas que nós recebíamos como registro de aula, mas também como depoimento de encontro entre alunas e professoras.

Arte na Cuca: A arte pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico, do empoderamento e do sentimento de pertencimento das pessoas. Em sua opinião, projetos culturais que visam à transformação social por meio da arte, podem beneficiar a sociedade num todo?

Samira: Ah, como certeza! Os pontos de cultura são provas vivas de que arte muda e transforma o posicionamento coletivo de um bairro, de uma comunidade. Em Joinville temos a AMORABI, no bairro Itinga – um ponto de cultura ativo e resistente, que é referência na cidade, no estado e no Brasil.

Arte na Cuca: No artigo “Sobre Cartas, Celas, elas e professoras – em – processo”, publicado na revista Urdimento (nº 39. Nov/dez 2020), você e a atriz Daiane Dordete Stecket Jacobs, citam a fala de uma das alunas durante as aulas de teatro na PRJ:

“Nós não podemos ter espelho aqui. Isso é uma forma de diminuir a gente, de acabar com a nossa autoestima. Como a gente pode ser uma pessoa melhor se a gente nem pode se ver, se a gente acaba esquecendo quem é? Precisamos nos amar para amar outras pessoas”.
De que forma estas e outras falas te impactaram como mulher, artista e educadora?

Samira: Pergunta difícil (risos). Mas foram vários momentos durante as aulas, na cela-aula. Quando você é professora em espaços mais vulneráveis, de exclusão social  não tem como você, em alguns momentos, agir como mulher e como ser humano. Acredito que esta vivência mudou o nosso olhar e visão de mundo completamente, eu a Daiane saíamos das aulas muitas vezes conversando muito sobre os acontecimentos vividos e/ou silenciosas.  Esses momentos que nos fizeram pensar nesta desmontagem do “Celas e Elas”, dar espaço a elas, seja através das cartas lidas e entregues ao público no final da apresentação, seja na exposição fotográfica que nos acompanha a cada apresentação, seja no bate-papo com o público após cada apresentação, seja nas cenas do celas- por exemplo- da família, que hoje me fazem lembrar das histórias das alunas entre seus filhos(as), mas principalmente, pensarmos ainda neste mundo privado que nós vivemos (consumismo exacerbado, tecnologia, violência, preconceito.)

Foto: Jaqueline Mello

Depoimentos de alunos durante as oficinas de teatro no PRJ

“Com as aulas podemos nos sentir por uns instantes fora dessas grades que nos tornam privadas do mundo”.(depoimento de ex alunas reeducandas do PRJ, curso de teatro 1º semestre 2019).

“As aulas tem me ensinado muitas coisas que eu não tinha aprendido e também ocupa a cabeça pra não pensar em coisas ruins.” (depoimento de ex alunas reeducandas do PRJ, curso de teatro 1º semestre 2019).

A seguir, alguns fragmentos de textos retirados do artigo “Sobre Cartas, Celas, elas e professoras – em – processo”, publicado na revista Urdimento (nº 39. Nov/dez 2020). Para ler o artigo completo clique AQUI.

Depois destes dois  anos  que  deixamos  o celas adormecido,  fiquei  com vontade  de  retomar  o  projeto,  talvez  com  outro  enfoque,  com  um  olhar mais direcionado às mulheres que estão no espaço prisional. Lembro do pouco acesso à arte e à cultura que elas relataram ter em conversas nos corredores do PRJ e nos bate-papos que fizemos após a apresentação do celas lá, no Dia Internacional da  Mulher, em  2012.  Nunca havia entrado  em  um  espaço  de encarceramento  e recordo de falas como: “nunca tinha visto uma peça de teatro” ou“ eu gostei mais da cena da mãe” (Página 05 do artigo: “Sobre Cartas, Celas, elas e professoras – em – processo” ano: 2020. Escrito por Daiane Dordete e Samira Sinara Souza)

A sensação parece de ser jogada como lixo, em um depósito humano… não é  à  toa  que  os  espaços  prisionais,  hospitais  psiquiátricos  e  os  ‘lixões’  são construções  localizadas  geralmente  longe  dos  centros  urbanos.  Que  tristeza!  E para piorar  a  sociedade  em  que  estamos  inseridas  ainda  não  percebeu  (ou  não quer perceber) os reflexos estarrecedores dessa discriminação: preconceito social

e abandono do Estado. A sociedade ainda não reconhece a ressocialização. Não é à toa que, por esses motivos, muitas mulheres reincidem nas infrações, pois não encontram mais espaço em uma sociedade que faz questão de lhes excluir. (Página 06,07 do artigo: “Sobre Cartas, Celas, elas e professoras – em – processo” ano. 2020. Escrito por Daiane Dordete e Samira Sinara Souza)

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