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“É só isso que eu tenho”. O sucesso da adaptação de The Last of Us para as telas da HBO

“É só isso que eu tenho”. O sucesso da adaptação de The Last of Us para as telas da HBO

Tente ler escutando a trilha sonora abaixo: 

Se você jogou The Last of Us Part I (2013) irá lembrar que existia um troféu chamado “É só isso que eu tenho”. Para conquistar esse troféu você tinha que encontrar momentos no game que dessem oportunidades para a Ellie contar piadas, como as representadas nos episódios da adaptação feita pela HBO. Lembra? A que eu mais gosto é essa: “As pessoas fazem piadas sobre o apocalipse como se não houvesse amanhã”

Acho que a mensagem da piada da Ellie traz uma ideia genial, afinal em todo o meu tempo de vida eu convivi com filmes, séries e jogos sobre exatamente a mesma temática, zumbis e mundo apocalíptico. Ou seja, as pessoas fazem filmes, jogos e séries sobre o mundo apocalíptico como se não houvesse amanhã. Produções que me lembro e joguei, sem falar em séries que assisti como The Walking Dead, foram os clássicos da série Resident Evil, ou os mais recentes, ou não tanto assim, Days Gone e Day Z. Jogos de sobrevivência, aventura, horror, mas que raramente conseguiram trazer uma trama tão profunda como a construída por Niel Druckmann em The Last of Us. 

Tanto nos jogos como na adaptação cinematográfica a narrativa envolve uma pandemia onde o fungo denominado cordyceps elimina a humanidade transformando boa parte dos humanos em uma espécie um pouco mais sofisticada de zumbi, tendo algumas diferenças entre a série e o game. Porém, o que importa é a busca por sobrevivência, abrigo, armas remédios, mantimentos em um ambiente inóspito e injusto, mas que tem como ênfase as relações humanas, entre os personagens, suas dores e experiências nesse mundo.  

Uma vez ou outra esse tema é potencializado, o contexto de sua produção tanto induz como se alimenta das expectativas presentes na sociedade. Mas quais anseios podem estar presentes nas interações entre os personagens de Ellie, Joel, Sarah, Tommy, Tess, Marlene, entre outros da série? Será que assistimos o futuro ou é apenas o nosso sentimento e preocupações do presente literalmente projetados numa tela? Além disso, por que produzimos tanta ficção apocalíptica? Seria o nosso pessimismo no presente? 

The Last of Us HBO: T1E9

“A ficção científica não nos projeta para o futuro, ela nos relata estórias sobre o nosso presente, e, mais importante, sobre o passado que gerou o presente. Contra intuitivamente, a ficção científica é um modo historiográfico, um meio de descrever simbolicamente sobre história”.

(ROBERTS: 2000, p. 82)

Mesmo que a série da HBO não seja ficção científica, a reflexão de Adam Roberts acima poderia perfeitamente ilustrá-la. Afinal, esse modo de narrar um mundo fictício, exagerado emocionalmente, excessivo em seus perigos, entre estaladores e humanos canibais, destaca um mundo sem estruturas e desgarrado de leis. Especialmente na maneira de apresentar os diálogos existenciais entre os personagens, explicitam do que realmente se trata essa história e obviamente não é sobre “zumbis” ou estaladores. 

Nas representações futuristas é o exagero do nosso próprio tempo que está em questão, são as preocupações ou dores cotidianas do nosso mundo que estão sendo mostradas. O que está lá, está aqui. Daí, talvez, um dos vários motivos dos jogos e a série terem atingido tamanho sucesso, um fruto do seu tempo. O excesso da ansiedade e das expectativas em meio a um futuro nunca consistente, um imaginário que não consegue alicerce no presente? 

Nossa geração não consegue ver um futuro otimista, nosso contexto não é seguro, tudo parece uma selva e como dizia Mark Fisher, está ocorrendo um lento cancelamento do futuro. Se na década de 2000 tínhamos o passado como referência ao escutarmos músicas que tentavam reproduzir de forma nostálgica e artificial os anos 1960, na década de 2010 parece que estamos reproduzindo um presente pessimista através de ficções apocalípticas. Será que as produções audiovisuais atuais não passam de uma versão do grunge da década de 1990? Mesmo assim, exatamente por esse motivo, momentos de felicidade na simplicidade são destacados no game e na série. Esse mundo desestruturado, sem leis, sem quaisquer esperanças faz com que os personagens concentrem nas pequenas e raras experiências de felicidade, como na famosa cena da girafa entre Ellie e Joel. 

The Last of Us HBO: T1E9

No quarto episódio, em direção à Kansas City (no game é Pittsburgh), Joel e Ellie conversam no carro sobre os caminhos de Tommy, mesmo que de uma forma pessimista e conformista com o mundo, Joel afirma que a referência na vida é a família, já que o restante da civilização desmoronou. Como Joel salienta, Ellie não viveu ainda o suficiente e tem evidentemente expectativa futura, no que Joel já viveu bastante e, portanto, tem muito passado em seu presente. Aliado a isso, sabemos que Joel não seria a melhor pessoa para dar conselhos, seu personagem não carrega consigo valores éticos elogiáveis. Mesmo assim, em um mundo pós-apocalíptico não há muito o que medir. O que interessa é que seria muito possível encontrar diálogos e reflexões como essas em qualquer ambiente cotidiano de nossas vidas. 

No primeiro game muitos fãs reclamaram por não poderem decidir o final do jogo e em parte não concordarem com a direção egoísta que Joel tomou. Para o professor de Ética em Video Games da Universidade de Utah, Dr. Jose P. Zagal, todos os personagens tem decisões realistas e não utópicas como nas narrativas típicas de heróis, o que faz com que se aproxime do público. Qual caminho você escolheria?  Por um lado, Marlene toma uma decisão sem ao menos consultar Ellie, por outro, o pai da Abby, Jerry Anderson, nem cogitou pensar caso fosse sua filha e, por fim, Joel viu seu trauma de perda se repetindo e o que Ellie pensava sobre sempre será um mistério. 

“No contexto de um jogo como The Last of Us, é um mundo distópico, pós-apocalíptico, não há mais civilização,” Zagal continua: “Isso é tematicamente apropriado, todos esses personagens vão ser meio quebrados, violentos e perigosos”.

Será que vivemos num mundo como se não houvesse amanhã? Será que sentimos que toda a civilização já deixou de existir e o que sobrou são os familiares, os amigos próximos e o restante nós já abandonamos? Qualquer possibilidade de crença no coletivo ser apenas uma ilusão? Será que caminhamos por um mundo distópico sem perceber? Como nas interações e experiências de personagens como Joel e Ellie? Se sentimos identificação com a série é porque de alguma forma existe muito presente naquele futuro que é narrado. 

The Last Of us HBO: T1E4

A piada sobre o apocalipse acima particularmente ocorreu no último episódio da série, a qual atingiu 8,2 milhões de espectadores mesmo tendo sido transmitida no horário do Oscar e alcançado a maior audiência que a HBO Max já teve na América Latina e Europa. Os recordes de audiência ou mesmo as avaliações que em momentos ultrapassaram Breaking Bad (2008) comprovam que a série obteve sucesso, satisfez os gamers e os novos fãs, algo que nenhuma outra adaptação de game jamais fez. Talvez isso tenha ocorrido pelo motivo de que o game tenha seguido a mesma estrutura do cinema, muito antes de existir a possibilidade da adaptação. Ou talvez, por ter criado uma narrativa em que emoções intensas entre os personagens reflitam diretamente em proporção as interações humanas em nosso cotidiano em meio a um mundo também inóspito. 

 Novas temporadas estão garantidas, a segunda parte do game será dividida e teremos ainda uns dois anos de espera. Sendo assim, desde 2013 The Last of Us está retratando o seu próprio tempo, a década de 2010, os sentimentos de uma sociedade que pouco sonha e sente de forma profunda o presente. Já sinto saudades e acho que estou quase conseguindo substituir Alice in Chains por The Last of Us, bora jogar… 🎮 🧟‍♂️ 🧟‍♀️ “É só isso que eu tenho”. 

Dica: assista o filme A Estrada (2009) dirigido por John Hillcoat e estrelado por Viggo Mortensen. O filme foi inspirado no livro de mesmo nome e que, por sua vez, ambos inspiraram a criação do jogo The Last of Us. Particularmente eu achei bem mais visceral e evidentemente realista do que The Last of Us, tanto nos jogos como na série. 

Trailer – A Estrada (2009).  Plataforma: HBO MAX 

Observação: Essa breve reflexão não teve intuito em discorrer sobre o que já foi feito em todas as plataformas, comparações entre o jogo e a série, se as cenas são em CGI ou não, quais atores desenvolveram determinados personagens etc. Portanto, teve como objetivo uma reflexão de caráter filosófico, histórico e ético sobre o tempo em que vivemos e sobre o tempo em que nos identificamos através dessa bela obra de arte. 

Referências:

FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2022. 

ROBERTS, Adam. Science Fiction. London: Routledge, 2000. 

Entrevista com o professor de Ética em Video Games da Universidade de Utah, Dr. Jose P. Zagal:

http://bit.ly/40rgLXo

Entrevista com Simon Reynolds – Retromania: Pop Culture’s Addition to its Own Past: 
http://bit.ly/3n8NbHV

Dados, crítica e avaliações: 

http://bit.ly/3LGQ9O5

http://bit.ly/3yWLGzq

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