Crédito foto de capa: Gerson Machado
Celebração de integrantes religião matrizes africana, monumento em homenagem ao imigrante.
Fazer história: há algo que não te contam?
É comum a ideia de que o conhecimento sobre o passado não pode mudar. Imagina-se, também, a história como algo encerrado. Desse modo, certas discussões, como a que questiona se os portugueses “descobriram” ou “invadiram” estas terras que habitamos, podem acabar gerando desconfortos, como se houvesse alguém tentando deturpar ou manipular a história.
Isso acontece porque os meios de se produzir um conhecimento sobre o passado geralmente permanecem como um “não-dito” (CERTEAU, 2020). Ignora-se que o historiador está inserido num contexto sócio-histórico específico, que realiza uma pesquisa científica, sistemática e com base em vestígios do passado (isto é, fontes) e que atribui sentidos políticos de forma crítica a eles. Por fim, ele produz uma escrita que busca divulgar esse conhecimento sobre o passado e que, mais importante, ouso afirmar, busca interferir na realidade do presente. Nesse último ponto é necessário reconhecer que falar do passado é, na verdade, muito mais falar do presente.
É o costume de consumir narrativas prontas (e diria até enlatadas e de qualidade duvidosa) acerca do tempo que se foi que acaba levando a tal desconforto com discussões históricas críticas que emergem na cena pública. No último ano, presenciamos isso de forma contundente no Brasil e em outros países, quando ataques a estátuas/monumentos de figuras históricas fizeram diferentes passados se presentificarem como fantasmas saindo de feridas não cicatrizadas (ÁVILA, 2021a).
Pretendo, aqui, discutir um pouco acerca de quais passados emergem e quais passados permanecem imersos na cena pública da cidade de Joinville, tendo em vista que, em datas comemorativas, como o aniversário da cidade, sempre o passado local é algo que recebe grande atenção, principalmente por meio de mídias eletrônicas e digitais, como canais televisivos e redes sociais.
Um passado uno?
Tratando-se do passado de Joinville, estamos muito acostumados com a narrativa que evoca como chave de interpretação figuras como a princesa Dona Francisca, o príncipe François D’Orleans e o caso da venda das terras do dote da princesa para que a companhia Colonizadora de Hamburgo desse início ao processo de povoamento com imigrantes da “Alemanha”. A ênfase no imigrante alemão também é um forte elemento desta representação do passado. Minha ideia é que esses dois fatores, a narrativa do príncipe e da princesa e dos “pioneiros da Alemanha”, quando reforçados por diferentes tecnologias de mobilização do tempo histórico (ARAUJO, 2021), acabam por criar uma caricatura estereotipada da história de Joinville, passando a serem entendidos como os únicos passados possíveis da cidade.
É percebido o empreendimento histórico de consolidar esta história na memória pública da cidade. Recentemente, em 2021, uma emissora de televisão produziu um documentário inteiramente dedicado à biografia da princesa Dona Francisca, prestando homenagens a ela pelo crédito de ter dado início à história da cidade. Apenas duas décadas antes, no ano de 2001, um monumento em forma de barca foi inaugurado para demarcar o protagonismo dos imigrantes europeus e fazer o ritual de “sacralização” desse passado (MACHADO, p. 21, 2009). A ênfase nesse elemento estrangeiro, porém, não era novidade, pois, cinquenta anos antes, em 1951, outro monumento, também presente no centro de Joinville referenciando os “pioneiros” germânicos, já havia sido inaugurado (SILVA, 2008). Estes são apenas alguns dos vários vetores que ativam e mobilizam na memória pública um passado de Joinville uno, monolítico e cristalizado.
Mas, há outros passados de Joinville possíveis? Se sim, é possível escolher algum? Qual, então (se é que há um certo), dever-se-ia escolher? No que resultam e implicam essas escolhas? Essas são algumas perguntas, motivadas pelas reflexões do historiador Arthur Lima de Ávila (2021b), que me levaram a escrever este texto. Não tenho o objetivo de respondê-las sumariamente, muito menos dizer qual é o “verdadeiro” ou o ideal passado da cidade. Meu intuito é despertar uma reflexão na leitora ou leitor para que possa, consequentemente, intervir no seu cotidiano em sociedade.
Passados esquecidos, negados e/ou silenciados?
A Colônia Dona Francisca não surgiu num vazio social e geográfico sem nenhum precedente histórico, como se pode supor. Apesar do discurso sobre o passado de Joinville, que trata das terras da princesa e dos imigrantes germânicos, ter sua sustentação em fontes históricas, outros fatores são esquecidos ou silenciados nessa narrativa.
Lembremos, de início, que no século XIX o Brasil vivia sob um Império. Império que tinha como principal pilar de sua sustentação econômico-social, o trabalho escravo. Quando a Inglaterra reconheceu a Independência do Brasil, no ano de 1826, exigiu, como moeda de troca, que o tráfico de escravos fosse proibido nestas terras, pois isto iria favorecer seus negócios na Europa e nas suas colônias em África. Em 1831, o tráfico foi proibido, mas não cessado, permanecendo por meios ilegais.
Em via de toda essa pressão da Inglaterra com o fim do tráfico de escravos, alguns membros da elite brasileira passaram a perspectivar que a escravidão já estava com seus dias consumados. Nas suas visões, seria apenas uma questão de tempo para que este regime tivesse seu fim. Mas, claro, libertar os escravos repentinamente seria um ato demasiado irresponsável. O trabalho “livre” e assalariado, que já vigorava principalmente na Inglaterra em plena Revolução Industrial, era visto como solução. Porém, a finalidade dos negros só poderia ser o trabalho escravizado. Para implantar o serviço com mão-obra-livre e assalariada, a massa de trabalhadores pretos tinha de ser substituída. A aposta foi na imigração (DOLHNIKOFF, 2003).
Além propriamente do racismo, o darwinismo social, ideologia científica que, a partir da metade do século XIX, esteve fortemente presente em diferentes países, afirmava que os trabalhadores considerados mais aptos para o trabalho livre eram os brancos europeus. Os ditos “alemães”, eram os preferidos, pois se pensava que eram mais vocacionados do que outros povos para o trabalho no campo e em ofícios urbanos. Paralelamente, o território alemão, ainda não unificado em Estado Nação, passava por uma crise em razão de sua industrialização tardia. Hamburgo mantinha historicamente negócios com o Brasil e a demanda por imigrantes foi vista como uma grande oportunidade de lucrar e, também, se livrar da mão-de-obra que lá estava sobrando. De forma geral, a maioria dos imigrantes de origem germânica que vieram para o Brasil e Joinville era composta de pessoas com baixo poder aquisitivo que se dedicava à lavoura e trabalhos artesanais (CUNHA, 2008).
Em vista desses eventos, notamos a dimensão e espessura do contexto em que foi fundada e colonizada por imigrantes germânicos a Colônia Dona Francisca, em 1851, nas terras dotais da princesa e do príncipe. Raras vezes notamos menções ao processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil ao se tratar da fundação da Colônia Dona Francisca. Igualmente persiste o silenciamento em relação aos que antes já moravam na região, algo já demonstrado em obra clássica da historiografia da cidade, o livro História de Joinville: Crônica da Colônia Dona Francisca, do historiador Carlos Ficker, publicada em 1962. Nela, o autor demonstra como brasileiros de origem portuguesa e, também, negros escravizados já habitavam certas regiões de onde viria ser Joinville, e, inclusive, como os escravizados foram empregados no trabalho de abrir as primeiras “picadas” em meio ao mato antes da chegada dos imigrantes (FICKER, 2008).
Geralmente, silenciamentos como esse servem para legitimar políticas no presente que buscam excluir ou até mesmo atacar determinados setores da população. Ademais, muitas vezes são esses setores que, de fora do meio acadêmico, incitados pela controvérsia, reivindicam novos olhares para o passado (TROUILLOT, 2016). Isso nos mostra a importância da emersão da discussão histórico-crítica na cena pública, fazendo o passado não estar sob o monopólio dos historiadores.
No entanto, esse é somente o caso mais nítido de silenciamento de passados da cidade de Joinville. Podemos citar alguns outros.
Quando a cidade comemorava seus 100 anos de fundação, uma série de ações foram empreendidas. Esse momento, na frase que dá título ao livro da historiadora Janine Gomes da Silva, foi um “tempo de lembrar” e, também, um “tempo de esquecer”. Ora, as comemorações se fizeram logo após um momento conturbado na cidade, a chamada Campanha de Nacionalização do Estado Novo, na qual pessoas de ascendência estrangeira tiveram suas práticas culturais e cotidianas suprimidas em razão da política do Estado Novo sob o presidente Getúlio Vargas. Tendo a campanha chegado ao fim, as comemorações do centenário foram vistas como um momento para redimir essa população. Desse modo, a memória da fundação da cidade foi ressignificada e atribuída quase exclusivamente à “força de vontade” alemã (SILVA, 2008). Desde então, já se tentava explicar o sucesso industrial e econômico de Joinville por conta de um suposto “DNA alemão” – ideia que ainda permanece forte em certos dirigentes públicos (SILVEIRA, 2021). No caso do Sesquicentenário, comemorado no ano de 2001, o discurso foi outro. Havia sido reconhecida a nova paisagem étnica e cultural da cidade, em razão das (i)migrações, porém, o clima das comemorações, ditada pelo ritmo e perspectivas de um grupo minoritário de homens, estava impregnada de um teor pedagógico para aqueles “forasteiros” que, não bastasse terem conseguido emprego e sua subsistência na cidade, deveriam também amar incondicionalmente Joinville (MACHADO, 2009). Dito de outra forma, até admitiu-se o ingresso de outros atores (marginalizados) nas cenas do passado e do presente, contudo, como personagens coadjuvantes.
A contrapelo dessa concepção, o que explica o sucesso “alemão empreendedor”, tomando com base a obra do historiador Dilney Cunha, História do trabalho em Joinville, é que entre os simples camponeses e artesãos que migraram da Europa para o Brasil, também vieram algumas pessoas letradas e com certo capital econômico dispostas a investir e, assim, empregar a mão-de-obra que, na Colônia, então havia de sobra (CUNHA, 2008).
Porém, esse passado de “sucesso empreendedor alemão”, além de silenciar o passado dos imigrantes germânicos de origem humilde que sofreram com a hostilidade destas terras quando nela chegaram, deturpa o passado de grupos geralmente marginalizados e subalternizados. Em outras palavras, a narrativa caracterizada por esse culto ao empreendedor, silencia os passados dos operários e dos lavradores de Joinville (principalmente os passados de conflitos entre empregados e patrões).
É comum a difusão da ideia de que Joinville é uma cidade ordeira, sem grandes conflitos sociais e harmoniosa em suas relações. A historiadora Iara Andrade da Costa, ao estudar a imprensa escrita entre os anos de 1917 e 1943, demonstrou que existem passados que desmistificam essa idealização. Em A Cidade da Ordem: Tensões Sociais e Controle, a autora desconstrói o mito de cidade ordeira e de trabalhadores passivos. Revoltados com suas condições de trabalho, moradia, salário, altos impostos e outros motivos, os operários das fábricas tomaram as ruas para protestar por meio de greves. Entretanto, eram vistos como motivos de vergonha e taxados de desordeiros, infiltrados e vagabundos (COSTA, 1996). Assim, desde então, Joinville pode, sim, ser considerada a cidade do trabalho. Mas será ela a cidade dos trabalhadores?
Diversos outros passados poderiam ocupar o espaço deste texto e que são igualmente necessários para compreender e intervir em nosso presente, como o das (i)migrações contemporâneas, que desde 1980 não cessaram e que vem transformando e (re)inventando continuamente a paisagem social da cidade (COELHO, 2011); também poderia ter citado alguns passados ainda mais incômodos, que deixaram certas marcas tácitas no ethos da cidade, como o do fascismo integralista (WENDLAND, 2011). Enfim, não quero tornar esse texto enfadonho demais para a leitora ou o leitor, mas espero ter conseguido demonstrar as várias possibilidades de passado que Joinville pode ter para si e, consequentemente, assumir as responsabilidades que implicam seus usos (e abusos) políticos. É importante, sempre ao deparar-se com a história una, fazer o mesmo questionamento do célebre filósofo judeu-alemão, Walter Benjamin: “não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas?” (LÖWY, p. 48, 2005).
Há uma moral para a história?
O cerne do argumento não é esquecer, silenciar ou negar a factibilidade da narrativa hegemônica sobre o passado da cidade, pois isto seria sentar-se do mesmo lado da mesa dos negacionistas, tão menos o objetivo é supervalorizar no presente alguns indivíduos antes renegados em detrimento de outros. Sobretudo, considero pensar o passado de Joinville por meio de outras chaves de interpretação, algo extremamente necessário, pois nosso presente, como bem podemos notar numa ligeira caminhada nas ruas da cidade, exige isso de nós. Não incorrer no erro da história monolítica e cristalizada é necessário justamente para não tornar o presente e o futuro habitável para apenas poucos indivíduos seletos.
Só com muitos passados simultâneos coexistindo no tempo presente, somente com uma história em aberto, abarcando uma multiplicidade de passados possíveis, é que teremos um horizonte com uma multiplicidade de futuros possíveis. Pensando a partir das proposições de Avila (2021a), o papel do historiador, julgo ser, o de trazer de volta a capacidade de imaginar o futuro e com isso, renovar as esperanças (e utopias?) para um porvir melhor que nosso presente, que se encontra fechado em si e por si mesmo, e que se refugia num passado fantasiado de vale encantado. Porém, o passado não pertence somente aos historiadores, ele é um patrimônio público que deve ser usado com cuidado e adequadamente. O desafio é transformar essa história (múltipla) cientificamente produzida em algo com sentido prático nas vidas dos que habitam essa cidade para, assim, transformá-la (AVILA, 2021a).
O passado que escolhi, a leitora ou leitor já deve ter percebido. As consequências da escolha desse passado, também me são evidentes. Meu desejo é que elas impliquem num presente e futuro mais habitável, isto é, igualitário, equitativo e justo, seja se tratando de questões étnicas, de classe, gênero e entre muitas outras. Agora, tendo as opções postas à mesa, me obrigo a questionar: você, qual passado vai escolher?
Weslley dos Santos Graper
Acadêmico do 4º ano do curso de História da Universidade da Região de Joinville – Univille, bolsista dos Projetos de Extensão, Laboratório de História Oral da Univille (LHO) e Centro Memorial da Univille (CMU), bolsista de Iniciação Científica da FAPESC e membro do Grupo de Pesquisa Cidade Cultura e Diferença (GPCCD).
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo para além da história disciplinar. In: AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (org.). A História (in)disciplinada. 2ª ed. Vitória: Editora Milfontes, 2021.
AVILA, Arthur Lima de. A História no Labirinto do Presente: Ensaios (in)disciplinados sobre teoria da história, história da historiografia e usos políticos do passado. Vitória: Editora Milfontes, 2021a.
AVILA, Arthur Lima de. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 41, no 87, 2021b.
CERTEAU, Michel. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel. A Escrita da História.
Tradução Maria de Lourdes Menezes. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.
COELHO, Ilanil. Pelas tramas de uma cidade migrante. Joinville: Editora Univille, 2011.
COSTA, Iara Andrade da. A Cidade da Ordem: Tensões Sociais e Controle (1917-1943). Orientador: Euclides Marchi. 1996. 255 f. (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1996.
CUNHA, Dilney. História do trabalho em Joinville: Gênese. Joinville: Edições TodaLetra, 2008.
DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado nacional. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003.
FICKER, Carlos. História de Joinville: Crônica da Colônia Dona Francisca. Joinville: Editora Letradágua, 2008.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
MACHADO, Diego Finder. REDIMIDOS PELO PASSADO? SEDUÇÕES NOSTÁLGICAS EM UMA CIDADE CONTEMPORÂNEA (JOINVILLE, 1997-2008). Orientador: Emerson Cesar de Campos. 2009. 178 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós- Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
SILVA, Janine Gomes da. Tempo de lembrar, tempo de esquecer: As vibrações do Centenário e o período da Nacionalização: histórias e memórias sobre a cidade de Joinvile. Joinville: Editora Univille, 2008.
SILVEIRA, Felipe. A política em Joinville: O problema do DNA alemão. O Mirante Joinville. Joinville, 30 jun. 2021. Disponível em: https://omirantejoinville.com.br/2021/06/30/a-politica-em-joinville-o-problema-do-dna-alemao/. Acesso em: 25 fev. 2022.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: o poder e a produção da história. Tradução Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016.
WENDLAND, Daniely. INTEGRALISMO, CÍRCULO OPERÁRIO CATÓLICO E SINDICATOS EM JOINVILLE (1931-1948). Orientador: Adriano Luiz Duarte. 2011. 244 f. Dissertação (Curso de Pós-Graduação em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.