Super-heróis, imaginário ou realidade? Como a ficção em HQs transforma e representa a diversidade do real

Os imaginários contados através do cinema, dos games, das HQs, das peças de teatros, entre outras expressões artísticas, permitem nos transportar no tempo, experimentar emoções que fazem com que nossa existência expanda as meras experiências cotidianas. Em alguns momentos visto como escapismo, alienação e mero entretenimento, as produções artísticas podem também produzir identificação, representação e especialmente a empatia. Talvez essa última característica seja o que mais incomode alguns setores da sociedade. 

* Se estas criações são apenas ficções, por quais motivos geram um impacto na realidade? Ou melhor, qual seria a razão que leva uma ficção de um super-herói como Superman a boicotes, protestos, perseguição de artistas e outros absurdos incontáveis dependendo de qual história busca contar?

Nós historiadores temos a prática de vermos e identificarmos aspectos da realidade mesmo em produções de ficção ou entretenimento. É possível perceber a relação entre um tempo histórico com a sua produção cultural, seu impacto na sociedade e, por sua vez, a influência desta sociedade na produção de cultura. As primeiras HQs no formato em que conhecemos surgiram ao redor da virada do século XIX, como Yellow Kid de Richard Outcault em 1895, mas os quadrinhos mais conhecidos apareceram em 1929 com Tarzan, Flash Gordon em 1934 de Alex Raymond, The Spirit em 1940 e Batman lançado em maio de 1939 pela National Publications, atualmente DC Comics. 

Essas histórias sofriam influência direta do seu tempo, por exemplo, em Batman podemos observar uma Gotham City decadente, tomada pelo crime, extrema desigualdade e desesperança, o que podemos perceber como fruto da década de 1930, pós crise econômica de 1929 e seus reflexos na cidade de Nova York. Outros exemplos declaram o seu tempo de publicação, como a edição de julho de 1942 quando Superman surge segurando o imperador japonês Hirohito e Hitler na capa da revista e ao longo da HQ defende valores americanos, critica visões racistas ou mesmo defende a democracia em contraposição ao autoritarismo dos países do eixo na Segunda Guerra Mundial. Além de percebermos também essas visões em Capitão América na edição de março de 1941, é possível ao longo do século XX captar outras expressões históricas nas HQs.

É em 1963, após o discurso de Martin Luther King em Washington, no auge da luta dos direitos civis, liberdade sexual ou contra a guerra no Vietnã, que é publicada a primeira edição de X-MEN. Nessa história a metáfora do direito a igualdade entre as pessoas ficou explícita na trama, afinal os mutantes lutavam por seus direitos e com o tempo passaram a ter personagens e lideranças como o Professor Xavier e Magneto, uma clara referência a Martin Luther King e Malcolm X. Poucos anos depois Stan Lee e Jack Kirby incluiriam o herói T’CHalla, conhecido como Pantera Negra numa edição do Quarteto Fantástico o que representaria a população negra e suas heranças africanas. Esse grupo de heróis claramente representam e representavam a diversidade de minorias, suas lutas por igualdade de direitos e abertamente em suas narrativas fazem críticas a visões conservadoras e preconceituosas. É somente em 1979 que John Byrne cria o personagem Estrela Polar, o primeiro herói gay da Marvel, que de forma paralela a luta da comunidade LGBTQIA+ nos EUA foi ganhando força em sua representatividade também nos quadrinhos.

A cultura induz, mas muitas vezes é induzida a refletir o seu entorno através de histórias que cative, gere identificação com as transformações do seu tempo e principalmente envolva o consumidor daquela história através da empatia. Não por acaso temos grupos conservadores que tentam censurar histórias como em “Vingadores – A Cruzada das Crianças” na bienal de São Paulo em 2019 ou mesmo recentemente devido a bissexualidade Joe Kent em Superman: Son of Kal – El. 

As histórias narradas através de super-heróis são histórias de lutas, lutas por direitos, contra o preconceito, pela justiça ou por um mundo melhor. Para isto fazer sentido é preciso que essas lutas façam parte das reinvindicações reais da sociedade e tragam empatia, aproximação e identificação por aqueles que sofrem a injustiça do seu tempo e talvez por esse motivo é que as resistências a essas transformações sejam tão fortes.

Estrela Polar, casa com Kyle Jinadu nas páginas de “Astonishing X-Men” (2013)

“Tudo é Rio”

Sabe aquele livro que alguém fala: “Nossa, você TEM que ler esse livro!”? Então, foi assim que “Tudo é Rio” da mineira Carla Madeira veio parar na minha estante. Lançado em 2014 pela Editora Record Ltda, “Tudo é Rio” conta a envolvente, impactante e surpreendente história de um triângulo amoroso: o casal apaixonado Dalva e Venâncio e Lucy, a prostituta mais despudorada da cidade que vai se “intrometer” na vida do casal. Nesse ponto, a narrativa poderia virar um clichê, mas em momento algum a trama tende ao “lugar-comum”.

Dalva e Venâncio formam aquele casal “perfeito” que se ama, é fiel e deseja passar o resto da vida juntos, porém Lucy, não se conforma com o fato de Venâncio não a desejar e, em um determinado momento, um fato une inapelavelmente a vida dos três. A obra de estreia de Carla Madeira, é daquele tipo de narrativa que nos tira o fôlego e nos faz querer acompanhar a história até o fim, sem interrupções. “Tudo é Rio”, conta com 204 páginas e o fluxo da narrativa nos faz entender o título: a linguagem torna a história rápida como a correnteza de um rio, a trama é muito bem urdida e a velocidade com que, de repente, tudo acontece é realmente impactante.

Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: “(…) Carla dá até raiva na gente. Como assim, um livro de estreia tão potente, tão perfeito, tão pronto? Mas, diante da excelência não adianta esbravejar, manda a humildade que façamos a nossa parte: reverenciar e divulgar.”

Por que ler?

Porque é o livro de estreia de uma escritora que, ao que indica, veio pra ficar. Porque a obra é dividida em capítulos curtos, o que torna a leitura fluida.

Porque a linguagem é acessível sem ser banal. Porque a autora trabalha as cenas eróticas, narrando o explícito sem ser vulgar. E, por fim, porque você merece se surpreender com o desfecho da obra. “Tudo é Rio” foi uma grata surpresa que eu recomendo para corajosos leitores.

Em tempo, embora não haja indicação da editora, eu indicaria a obra para o público adulto.

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